quarta-feira, 9 de maio de 2012

CATEQUESES DE BENTO XVI SOBRE OS DOUTORES DA IGREJA


13 de Junho de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Na história do cristianismo antigo é fundamental a distinção entre os primeiros três séculos e os sucessivos ao Concílio de Niceia de 325, o primeiro ecuménico. Quase como "ponto de união" entre os dois períodos encontram-se a "mudança constantinopolitana" e a paz da Igreja, assim como a figura de Eusébio, Bispo de Cesareia na Palestina. Ele foi o representante mais qualificado da cultura cristã do seu tempo em contextos muito variados, da teologia à exegese, da história à erudição. Eusébio é conhecido sobretudo como o primeiro historiador do cristianismo, mas foi também o maior filólogo da Igreja antiga.

Em Cesareia, onde provavelmente se deve situar por volta de 260 o nascimento de Eusébio, Orígenes tinha-se refugiado provindo de Alexandria, e ali fundara uma escola e uma grandiosa biblioteca. Precisamente nestes livros se formara, alguns decénios mais tarde, o jovem Eusébio. Em 325, como Bispo de Cesareia, participou com um papel de protagonista no Concílio de Niceia.

Subscreveu o Credo e a afirmação da plena divindade do Filho de Deus, por isso definido "da mesma substância" do Pai (homooúsios tõ Patrí). É praticamente o mesmo Credo que nós recitamos todos os domingos na Santa Liturgia. Sincero admirador de Constantino, que tinha dado a paz à Igreja, Eusébio por sua vez o estimou e considerou. Celebrou o imperador, não só nas suas obras, mas também com discursos oficiais, pronunciados no vigésimo e trigésimo aniversário da sua ascensão ao trono, e depois da morte, que se verificou em 337. Dois ou três anos mais tarde faleceu também Eusébio.

Estudioso incansável, nos seus numerosos escritos Eusébio propõe-se reflectir e analisar três séculos de cristianismo, três séculos vividos sob a perseguição, haurindo amplamente das fontes cristãs e pagãs conservadas sobretudo na grande biblioteca de Cesareia. Assim, não obstante a importância objectiva das suas obras apologéticas, exegéticas e doutrinais, a fama imperecível de Eusébio permanece ligada em primeiro lugar aos dez livros da sua História Eclesiástica. Foi o primeiro que escreveu uma história da Igreja, que permanece fundamental graças às fontes colocadas por Eusébio à nossa disposição para sempre. Com esta História ele conseguiu salvar de esquecimento certo numerosos acontecimentos, personagens e obras literárias da Igreja antiga. Portanto, trata-se de uma fonte primária para o conhecimento dos primeiros séculos do cristianismo.

Podemos perguntar como estruturou ele e com que intenções redigiu esta nova obra. No início do primeiro livro o historiador elenca pontualmente os temas que deseja tratar na sua obra: "Propus-me pôr por escrito as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos, a partir dos do nosso Salvador até nós; todas as coisas grandiosas que se diz que foram realizadas durante a história da Igreja; todos os que dirigiram e orientaram excelentemente as dioceses mais ilustres; os que, em cada geração foram mensageiros da Palavra divina com a palavra ou com os escritos; e quais foram, quantos e em que período de tempo os que por desejo de novidade, depois de terem caído ao máximo no erro, se tornaram intérpretes e promotores de uma falsa doutrina, e como lobos cruéis devastaram ferozmente o rebanho de Cristo; ...e com quantos e quais meios e em que tempos foi combatida por parte dos pagãos a Palavra divina; e os homens grandes que, para a defender, passaram através de duras provas de sangue e de torturas; e finalmente os testemunhos do nosso tempo, e a misericórdia e a benevolência do nosso Salvador para com todos nós" (1, 1, 1-2). Desta forma Eusébio abraça diversos sectores: a sucessão dos Apóstolos como coluna da Igreja, a difusão da mensagem, os erros, depois as perseguições por parte dos pagãos e os grandes testemunhos que são a luz desta História. Em tudo isto transparecem para ele a misericórdia e a benevolência do Salvador. Eusébio inaugura assim a historiografia eclesiástica, levando a sua narração até 324, ano em que Constantino, depois da derrota de Licínio, foi aclamado único imperador de Roma. Estamos no ano anterior ao grande Concílio de Niceia que depois oferece a "suma" de quanto a Igreja doutrinal, moral e também juridicamente tinha aprendido nestes trezentos anos.

A citação que extraímos do primeiro livro da História Eclesiástica contém uma repetição certamente intencional. Três vezes no espaço de poucas linhas se repete o título cristológico de Salvador, e se faz referência explícita à "sua misericórdia" e à "sua benevolência". Podemos recolher assim a perspectiva fundamental da historiografia eusebiana: a sua é uma história "cristocêntrica", na qual se revela progressivamente o mistério do amor de Deus pelos homens.

Com genuíno enlevo, Eusébio reconhece "que junto de todos os homens do mundo inteiro só Jesus é professado, confessado, reconhecido Cristo [isto é Messias e Salvador do mundo], que é recordado com este nome quer pelos gregos quer pelos bárbaros, e ainda hoje é honrado pelos seus discípulos espalhados por todo o mundo como um rei, admirado mais que um profeta, glorificado como verdadeiro e único sacerdote de Deus; e mais que tudo isto, como Logos de Deus preexistente e gerado antes de todos os tempos, ele recebeu do Pai honra digna de veneração, e é adorado como Deus. O mais extraordinário é que todos os que lhe estamos consagrados o celebrem não só com as vozes e o som das palavras, mas com todas as disposições do coração, de modo que ponhamos diante da nossa própria vida o testemunho a ele prestado" (1, 3, 19-20). Sobressai assim em primeiro plano outra característica, que permanecerá constante na antiga historiografia eclesiástica: é "a intenção moral" que preside à narração. A análise histórica nunca é fim em si mesma; não é feita só para conhecer o passado; antes, ela tem por finalidade decididamente a conversão, e um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É uma guia para nós próprios.

Desta forma Eusébio interpela vivazmente os crentes de todos os tempos em relação ao seu modo de abordar as vicissitudes da história, e da Igreja em particular. Ele interpela também a nós: qual é a nossa atitude em relação às vicissitudes da Igreja? É a atitude de quem se interessa por uma simples curiosidade, talvez procurando o que é sensacional e escandaloso a qualquer preço? Ou é a atitude cheia de amor, e aberta ao mistério, de quem sabe por fé que pode encontrar na história da Igreja os sinais do amor de Deus e as grandes obras da salvação por ele realizadas? Se for esta a nossa atitude, não podemos deixar de nos sentir estimulados a dar uma resposta mais coerente e generosa, a um testemunho mais cristão de vida, para deixar os sinais do amor de Deus também às gerações futuras.

"Há um mistério", não se cansava de repetir aquele eminente estudioso dos Padres que foi o Cardeal Jean Daniélou: "Há um conteúdo escondido na história... O mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade autêntica, escondida por detrás das aparências... Mas esta história que Deus realiza para o homem, não a realiza sem ele. Deter-se na contemplação das "grandes coisas" de Deus significaria ver só um aspecto das coisas. Perante elas está a resposta dos homens" (Ensaio sobre o mistério da história, ed. it., Brescia 1963, p. 182). A tantos séculos de distância, também hoje Eusébio de Cesareia convida os crentes, convida a nós, a admirar-nos, a contemplar na história as grandes obras de Deus para a salvação dos homens. E com igual energia ele nos convida à conversão da vida. De facto, face a um Deus que nos amou deste modo, não podemos permanecer inertes. A solicitação própria do amor é que toda a vida seja orientada para a imitação do Amado. Portanto, façamos o possível para deixar na nossa vida um vestígio transparente do amor de Deus.


20 de Junho de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Continuando a nossa retrospectiva dos grandes Mestres da Igreja antiga, queremos dirigir hoje a nossa atenção a Santo Atanásio de Alexandria. Este autêntico protagonista da tradição cristã, poucos anos depois da sua morte, foi celebrado como "a coluna da Igreja" pelo grande teólogo e Bispo de Constantinopla Gregório Nazianzeno (Discursos 21, 26), e foi sempre considerado como um modelo de ortodoxia, tanto no Oriente como no Ocidente. Portanto, não foi por acaso que Gian Lorenzo Bernini colocou uma sua estátua entre a dos quatro santos Doutores da Igreja oriental e ocidental juntamente com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho que na maravilhosa abside da Basílica vaticana circundam a Cátedra de São Pedro.

Atanásio foi sem dúvida um dos Padres da Igreja antiga mais importantes e venerados. Mas sobretudo este grande santo é o apaixonado teólogo da encarnação do Logos, o Verbo de Deus, que como diz o prólogo do quarto Evangelho "se fez carne e veio habitar entre nós" (Jo 1, 14).

Precisamente por este motivo Atanásio foi também o mais importante e tenaz adversário da heresia ariana, que então ameaçava a fé em Cristo, reduzido a uma criatura "intermediária" entre Deus e o homem, segundo uma tendência recorrente na história e que vemos concretizada de diversas formas também hoje. Nascido provavelmente em Alexandria, no Egipto, por volta do ano 300, Atanásio recebeu uma boa educação antes de se tornar diácono e secretário do Bispo da metrópole egípcia, Alexandre. Estreito colaborador do seu Bispo, o jovem eclesiástico participou com ele no Concílio de Niceia, o primeiro de carácter ecuménico, convocado pelo imperador Constantino em Maio de 325 para garantir a unidade da Igreja. Os Padres nicenos puderam assim enfrentar várias questões, e principalmente o grave problema causado alguns anos antes pela pregação do presbítero alexandrino Ário.

Ele, com a sua teoria, ameaçava a fé autêntica em Cristo, declarando que o Logos não era verdadeiro Deus, mas um Deus criado, um ser "intermediário" entre Deus e o homem e assim o verdadeiro Deus permanecia sempre inacessível para nós. Os Bispos reunidos em Niceia responderam preparando e fixando o "Símbolo de fé" que, completado mais tarde pelo primeiro Concílio de Constantinopla, permaneceu na tradição das diversas confissões cristãs e na liturgia como o Credo niceno-constantinopolitano. Neste texto fundamental que expressa a fé da Igreja indivisa, e que recitamos também hoje, todos os domingos, na Celebração eucarística encontra-se a palavra grega homooúsios, em latim consubstantialis: ele pretende indicar que o Filho, o logos, é "da mesma substância do Pai, é Deus de Deus, é a sua substância, e assim é posta em realce a plena divindade do Filho, que tinha sido negada pelos arianos.

Tendo falecido o Bispo Alexandre, Atanásio tornou-se, em 328, seu sucessor como Bispo de Alexandria, e logo depois demonstrou-se decidido a recusar qualquer compromisso em relação às teorias arianas condenadas pelo Concílio niceno. A sua intransigência, tenaz e por vezes muito dura, mesmo se necessária, contra quantos se tinham oposto à sua eleição episcopal e sobretudo contra os adversários do Símbolo niceno, atraiu a implacável hostilidade dos arianos e dos filo-arianos. Apesar do inequívoco êxito do Concílio, que tinha afirmado com clareza que o Filho é da mesma substância do Pai, pouco depois destas ideias erradas voltaram a prevalecer nesta situação até Ário foi reabilitado e foram defendidas por motivos políticos pelo próprio imperador Constantino e depois pelo seu filho Constâncio II. Ele, aliás, que não se interessava tanto pela verdade teológica como pela unidade do Império e dos seus problemas políticos, pretendia politizar a fé, tornando-a mais acessível segundo a sua opinião a todos os seus súbditos no Império.

A crise ariana, que se pensava estar resolvida em Niceia, continuou por decénios, com vicissitudes difíceis e divisões dolorosas na Igreja. E por cinco vezes durante um trinténio, entre 336 e 366 Atanásio foi obrigado a abandonar a sua cidade, transcorrendo 17 anos no exílio e sofrendo pela fé. Mas durante as suas forçadas ausências de Alexandria, o Bispo teve a oportunidade de defender e difundir no Ocidente, primeiro em Trier e depois em Roma, a fé nicena e também os ideais do monaquismo, abraçados no Egipto pelo grande eremita Antão com uma opção de vida à qual Atanásio sempre esteve próximo. Santo Antão, com a sua força espiritual, era a pessoa mais importante na defesa da fé de Santo Atanásio. Insediado de novo e definitivamente na sua sede, o Bispo de Alexandria pôde dedicar-se à pacificação religiosa e à reorganização das comunidades cristãs. Faleceu a 2 de Maio de 373, dia em que celebramos a sua memória litúrgica.

A obra doutrinal mais famosa do santo Bispo alexandrino é o tratado Sobre a encarnação do Verbo, o Logos divino que se fez carne tornando-se como nós para a nossa salvação. Atanásio diz nesta obra, com uma afirmação que se tornou justamente célebre, que o Verbo de Deus "se fez homem para que nos tornássemos Deus; ele fez-se visível no corpo para que tivéssemos uma ideia do Pai invisível, e ele próprio suportou a violência dos homens para que nós herdássemos a incorruptibilidade" (54, 3). De facto, com a sua ressurreição o Senhor fez desaparecer a morte como se fosse "palha no fogo" (8, 4). A ideia fundamental de toda a luta teológica de Santo Atanásio era precisamente a de que Deus é acessível. Não é um Deus secundário, é o Deus verdadeiro, e através da nossa comunhão com Cristo podemos unir-nos realmente a Deus. Ele tornou-se realmente "Deus connosco".

Entre as obras deste grande Padre da Igreja que em boa parte permanecem ligadas às vicissitudes da crise ariana recordamos depois as quatro cartas que ele enviou ao amigo Serapião, Bispo de Thmuis, sobre a divindade do Espírito Santo, que foi afirmada com determinação, e cerca de trinta cartas "festivas", dirigidas no início de cada ano às Igrejas e aos mosteiros do Egipto para indicar a data da festa de Páscoa, mas sobretudo para garantir os vínculos entre os fiéis, fortalecendo a sua fé e preparando-os para essa grande solenidade.

Por fim Atanásio é também autor de textos meditativos sobre os Salmos, depois muito difundidos e sobretudo de uma obra que constitui o best seller da antiga literatura cristã: a Vida de Antão, isto é, a biografia do abade Santo Antão, escrita pouco depois da morte deste santo, precisamente enquanto o Bispo de Alexandria, exilado, vivia com os monges do deserto egípcio. Atanásio foi amigo do grande eremita, a ponto que recebeu uma das duas peles de ovelha deixadas por Antão como sua herança, juntamente com a capa que o próprio Bispo de Alexandria lhe tinha oferecido. Tendo-se tornado depressa muito popular, traduzida quase imediatamente em latim por duas vezes e depois em diversas línguas orientais, a biografia exemplar desta figura querida à tradição contribuiu muito para a difusão do monaquismo, no Oriente e no Ocidente.

Não por acaso a literatura deste texto, em Trier, está no centro de uma emocionante narração da conversão de dois funcionários imperiais, que Agostinho coloca nas Confissões (VIII, 6, 15) como premissa da sua própria conversão. De resto, o próprio Atanásio mostra ter uma consciência clara da influência que a figura exemplar de Antão podia ter sobre o povo cristão. De facto escreve na conclusão desta obra: "Que fosse conhecido em toda a parte, por todos admirado e desejado, até por quantos não o tinham visto, é um sinal da sua virtude e da sua alma amiga de Deus. De facto, Antão não é conhecido pelos escritos nem por uma sabedoria profana nem por qualquer capacidade, mas só pela sua piedade em relação a Deus. E ninguém poderia negar que isto é um dom de Deus. De facto, como se teria ouvido falar na Espanha e na Gália, em Roma e em África deste homem, que vivia retirado entre os montes, se o não tivesse dado a conhecer em toda a parte o próprio Deus, como ele faz com quantos lhe pertencem, e como tinha anunciado a Antão desde o princípio? E também se estes agem no segredo e desejam permanecer escondidos, o Senhor mostra-os a todos como um lampadário, para que quantos ouvem falar deles saibam que é possível seguir os mandamentos e se sintam encorajados a percorrer o caminhoda virtude" (Vida de Antão 93, 5-6).

Sim, irmãos e irmãs! Temos tantos motivos de gratidão para com Santo Atanásio. A sua vida, como a de Antão e de muitos outros santos, mostra-nos que "quem caminha para Deus não se afasta dos homens, antes, pelo contrário, torna-se-lhes verdadeiramente vizinhos" (Deus caritas est, 42).

Quarta-feira,


27 de Junho de 2007


Estimados irmãos e irmãs!

A nossa atenção concentra-se hoje sobre São Cirilo de Jerusalém. A sua vida representa o enlace de duas dimensões: por um lado, a solicitude pastoral e, por outro, o envolvimento contra a sua vontade nas animadas controvérsias que atormentavam então a Igreja do Oriente. Tendo nascido por volta de 315 em Jerusalém ou arredores, Cirilo recebeu uma óptima formação literária; foi esta a base da sua cultura eclesiástica, centrada no estudo da Bíblia. Ordenado Presbítero pelo Bispo Máximo, quando este faleceu ou foi deposto, em 348 foi ordenado Bispo por Acácio, influente metropolita de Cesareia da Palestina, filoariano, convencido de ter nele um aliado. Por isso, foi suspeitado de ter obtido a nomeação episcopal mediante concessões ao arianismo.

Na realidade, muito cedo Cirilo se confrontou com Acácio não só a nível doutrinal, mas também a nível jurisdicional, porque Cirilo reivindicava a autonomia da própria sede em relação àquela metropolitana de Cesareia. No espaço de cerca de vinte anos, Cirilo conheceu três exílios: o primeiro em 357, com prévia disposição por parte de um Sínodo de Jerusalém, seguido em 360 por um segundo exílio por obra de Acácio, e por fim um terceiro, o mais longo durou onze anos em 367 por iniciativa do imperador filoariano Valente. Só em 378, depois da morte do imperador, Cirilo pôde retomar posse definitiva da sua sede, instaurando entre os fiéis a unidade e a paz.

Em favor da sua ortodoxia, posta em questão por algumas fontes da época, militam outras fontes igualmente antigas. Entre elas a mais autorizada é a carta sinodal de 382, depois do segundo Concílio ecuménico de Constantinopla (381), no qual Cirilo tinha participado com um papel qualificado. Nessa carta, enviada ao Pontífice romano, os Bispos orientais reconhecem oficialmente a mais absoluta ortodoxia de Cirilo, a legitimidade da sua ordenação episcopal e os méritos do seu serviço pastoral, que a morte concluirá em 387.

Dele conservamos vinte e quatro célebres catequeses, que ele expôs como Bispo por volta de 350. Introduzidas por uma Procatechesi de acolhimento, as primeiras dezoito delas são dirigidas aos catecúmenos ou iluminandos (photizomenoi); foram feitas na Basílica do Santo Sepulcro. As primeiras (1-5) falam cada uma delas, respectivamente, das disposições prévias ao Baptismo, da conversão dos costumes pagãos, do sacramento do Baptismo, das dez verdades dogmáticas contidas no Credo ou Símbolo da fé. As sucessivas (6-18) constituem uma "catequese contínua" sobre o Símbolo de Jerusalém, em chave antiariana. Das últimas cinco (19-23), chamadas "mistagógicas", as primeiras duas desenvolvem um comentário aos ritos do Baptismo, as últimas três falam da crisma, sobre o Corpo e Sangue de Cristo e sobre a liturgia eucarística. Nela está incluída a explicação do Pai-Nosso (Oratio dominica): ela funda um caminho de iniciação à oração, que se desenvolve paralelamente com a iniciação nos três sacramentos do Baptismo, da Crisma e da Eucaristia.

A base da instrução sobre a fé cristã desenvolvia-se também em função polémica contra pagãos, judeus-cristãos e maniqueístas. A argumentação era fundada na actuação das promessas do Antigo Testamento, numa linguagem rica de imagens. A catequese era um momento importante, inserido no amplo contexto de toda a vida, em particular a litúrgica, da comunidade cristã, em cujo seio materno acontecia a gestação do futuro fiel, acompanhada pela oração e pelo testemunho dos irmãos. No seu conjunto, as homilias de Cirilo constituem uma catequese sistemática sobre o renascimento do cristianismo através do Baptismo. Ao catecúmeno ele diz: "Caíste na rede da Igreja (cf. Mt 13, 47). Deixa-te, portanto, apanhar vivo; não fujas, porque é Jesus que te prende no seu anzol, para te dar não a morte mas a ressurreição depois da morte. De facto, deves morrer e ressurgir (cf. Rm 6, 11.14)... Morres para o pecado, e vives para a justiça a partir de hoje" (Procatechesi 5).

Sob o ponto de vista doutrinal, Cirilo comenta o Símbolo de Jerusalém com o recurso à tipologia das Escrituras, numa relação "sinfónica" entre os dois Testamentos, chegando a Cristo, centro do universo. A tipologia será incisivamente descrita por Agostinho de Hipona: "O Antigo Testamento é o véu do Novo Testamento, e no Novo Testamento manifesta-se o Antigo" (De catechizandis rudibus 4, 8). No que diz respeito à catequese moral, ela está ancorada em profunda unidade com a catequese doutrinal: o dogma desce progressivamente nas almas, as quais são assim solicitadas a transformar os comportamentos pagãos com base na nova vida em Cristo, dom do Baptismo. A catequese "mistagógica", por fim, marcava o vértice da instrução que Cirilo dava já não aos catecúmenos, mas aos neobaptizados ou neófitos durante a semana pascal. Ela introduzia-os na descoberta, sob os ritos baptismais da Vigília pascal, dos mistérios nele contidos e ainda não revelados. Iluminados pela luz de uma fé mais profunda em virtude do Baptismo, os neófitos estavam finalmente em condições de os compreender melhor, tendo já celebrado os seus ritos.

Em particular, com os neófitos de origem grega Cirilo contava com a faculdade visual, que lhe era congenial. Tratava-se da passagem do rito ao mistério, que valorizava o efeito psicológico da surpresa e a experiência vivida na noite pascal. Eis um texto que explica o mistério do Baptismo: "Por três vezes fostes imersos na água e para cada uma das três fostes imersos, para simbolizar os três dias da sepultura de Cristo, isto é, imitando com este rito o nosso Salvador, que passou três dias e três noites no seio da terra (cf. Mt 12, 40). Com a primeira emersão da água celebrastes a recordação do primeiro dia passado por Cristo no sepulcro, como com a primeira imersão confessastes a sua primeira noite passada no sepulcro, assim como quem está na noite não vê, e quem está no dia goza da luz, assim também vós. Enquanto antes estáveis imersos na noite e nada víeis, ao contrário, reemergindo encontrastes-vos em pleno dia. Mistério da morte e do nascimento, esta água de salvação foi para vós túmulo e mãe... Para vós... o tempo para morrer coincidiu com o tempo para nascer: um só e mesmo tempo realizou ambos os acontecimentos" (Segunda Catequese Mistagógica 4).

O mistério que se deve desvendar é o desígnio de Deus, que se realiza através das acções salvíficas de Cristo na Igreja. Por sua vez, a dimensão mistagógica está acompanhada pela dos símbolos, que expressam a vivência espiritual que eles fazem "explodir". Assim a catequese de Cirilo, com base nas três componentes descritas doutrinal, moral e, por fim, mistagógica , resulta uma catequese global no Espírito. A dimensão mistagógica actua a síntese das duas primeiras, orientando-as para a celebração sacramental, na qual se realiza a salvação do homem todo.

Trata-se, em definitiva, de uma catequese integral, que envolvendo corpo, alma e espírito permanece emblemática também para a formação catequética dos cristãos de hoje.


4 de Julho de 2007

Caros irmãos e irmãs

Hoje queremos recordar um dos grandes Padres da Igreja, São Basílio, definido pelos textos litúrgicos bizantinos um "luminar da Igreja". Foi um grande Bispo do século IV, para quem olha com admiração tanto a Igreja do Oriente como a do Ocidente pela santidade de vida, pela excelência da doutrina e pela síntese harmoniosa de dotes especulativos e práticos. Ele nasceu por volta de 330 numa família de santos, "verdadeira igreja doméstica", que vivia num clima de profunda fé. Completou os vários estudos com os melhores mestres de Atenas e de Constantinopla. Insatisfeito com os seus sucessos mundanos, e percebendo que tinha desperdiçado muito tempo nas vaidades, ele mesmo confessa: "Um dia, como que acordando de um sono profundo, dirigi-me para a admirável luz da verdade do Evangelho... e chorei sobre a minha vida miserável" (cf. Ep. 223: PG 32, 824a). Atraído por Cristo, começou a olhar para Ele e a ouvir somente Ele (cf. Moralia 80, 1: PG 31, 860bc). Com determinação dedicou-se à vida monástica na oração, na meditação das Sagradas Escrituras e dos escritos dos Padres da Igreja, e no exercício da caridade (cf. Epp. 2 e 22), seguindo também o exemplo da irmã, Santa Macrina, que já vivia no ascetismo monástico. Depois foi ordenado sacerdote e enfim, em 370, Bispo de Cesareia da Capadócia, na actual Turquia.

Mediante a pregação e os escritos, desempenhou uma intensa actividade pastoral, teológica e literária. Com sábio equilíbrio, soube unir o serviço às almas e a dedicação à prece e à meditação na solidão. Valendo-se da sua experiência pessoal, favoreceu a fundação de muitas "irmandades" ou comunidades de cristãos consagrados a Deus, que visitava frequentemente (cf. Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 29 in laudem Basilii: PG 36, 536b). Com a palavra e com os escritos, muitos dos quais chegaram até nós (cf. Regulae brevius tractatae, Proémio: PG 31, 1080ab), exortava-os a viver e a progredir na perfeição. Das suas obras hauriram também vários legisladores do monaquismo antigo, entre os quais São Bento, que considerava Basílio como o seu mestre (cf. Regula 73, 5). Na realidade, ele criou um monaquismo muito particular: não fechado à comunidade da Igreja local, mas aberto a ela. Os seus monges faziam parte da Igreja particular, eram o seu núcleo animador que, precedendo os outros fiéis no seguimento de Cristo e não só na fé, mostrava a firme adesão a Cristo o amor a Ele sobretudo nas obras de caridade. Estes monges, que tinham escolas e hospitais, estavam ao serviço dos pobres e mostraram assim a integridade da vida cristã. O Servo de Deus João Paulo II, falando do monaquismo, escreveu: "Muitos consideram que aquela estrutura principal da vida da Igreja que é o monaquismo foi posta, para todos os séculos, principalmente por São Basílio; ou que, pelo menos, não foi definida na sua natureza mais própria sem o seu contributo decisivo" (Carta Apostólica Patres Ecclesiae, 2).

Como Bispo e Pastor da sua vasta Diocese, Basílio preocupou-se constantemente pelas difíceis condições materiais em que viviam os fiéis; denunciou com firmeza os males; comprometeu-se a favor dos mais pobres e marginalizados; interveio também junto dos governantes para aliviar os sofrimentos da população, sobretudo em momentos de calamidade; vigiou pela liberdade da Igreja, opondo-se também aos poderosos para defender o direito de professar a verdadeira fé (cf. Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 48-51 in laudem Basilii: PG 36, 557c-561c). De Deus, que é amor e caridade, Basílio deu um válido testemunho com a construção de vários albergues para os necessitados (cf. Basílio, Ep. 94: PG 32, 488bc), quase uma cidade da misericórdia, que dele recebeu o nome de Basilíada (cf. Sozomeno, Historia Eccl. 6, 34: PG 67, 1397a). Ela está nas origens das modernas instituições hospitalares de internação e de cuidado dos doentes.
Consciente de que "a liturgia é o ápice para o qual tende a acção da Igreja, e ao mesmo tempo a fonte da qual jorra toda a sua virtude" (Sacrosanctum concilium, 10) Basílio, embora sempre preocupado em realizar a caridade que é a prova da fé, foi também um sábio "reformador litúrgico" (cf. Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 34 in laudem Basilii: PG 36, 541c). Com efeito, deixou-nos uma grande oração eucarística [ou anáfora], que dele recebe o nome, e deu um ordenamento fundamental à oração e à salmodia: pelo seu impulso o povo amou e conheceu os Salmos, e recitava-os também de noite (cf. Basílio, In Psalmum, 1-2: PG 29, 212a-213c). E assim vemos como a liturgia, a adoração, a oração com a Igreja e a caridade caminham juntas, condicionando-se reciprocamente.

Com zelo e coragem, Basílio soube opor-se aos hereges, que negavam que Jesus Cristo fosse Deus como o Pai (cf. Basílio, Ep. 9, 3: PG 32, 272a; Ep. 52, 1-3: PG 32, 392b-396a; Adv. Eunomium 1, 20: PG 29, 556c). Analogamente, contra aqueles que não aceitavam a divindade do Espírito Santo, ele afirmou que também o Espírito é Deus e "deve ser com o Pai e com o Filho igualmente numerado e glorificado" (cf. De Spiritu Sancto: SC 17bis, 348). Por isso, Basílio é um dos grandes Padres que formularam a doutrina sobre a Trindade: o único Deus, precisamente porque é amor, é um Deus em três Pessoas, que formam a unidade mais profunda que existe, a unidade divina.

No seu amor a Cristo e ao seu Evangelho, o grande Santo da Capadócia comprometeu-se também em recompor as divisões dentro da Igreja (cf. Epp. 70 e 243), empenhando-se para que todos se convertessem a Cristo e à sua Palavra (cf. De iudicio 4: PG 31, 660b-661a), força unificadora à qual todos os crentes devem obedecer (cf. ibid., 1-3: PG 31, 653a-656c).
Em conclusão, Basílio entregou-se completamente no serviço fiel à Igreja e no exercício multiforme do ministério episcopal. Segundo o programa por ele mesmo traçado, tornou-se "apóstolo e ministro de Cristo, dispensador dos mistérios de Deus, arauto do reino, modelo e regra de piedade, olho do corpo da Igreja, pastor das ovelhas de Cristo, médico piedoso, pai e sustento, cooperador de Deus, agricultor de Deus, construtor do templo de Deus" (cf. Moralia 80, 11-20: PG 31, 864b-868b).

Este é o programa que o santo Bispo entrega aos anunciadores da Palavra ontem e hoje um programa que ele mesmo se comprometeu generosamente a pôr em prática. Em 379 Basílio, não ainda cinquentenário, consumido pelos cansaços e pela ascese, retornou para Deus, "na esperança da vida eterna através de nosso Senhor Jesus Cristo" (De Baptismo 1, 2, 9). Ele era um homem que viveu verdadeiramente com o olhar fixo em Cristo. Era um homem do amor ao próximo. Cheio da esperança e da alegria da fé, Basílio mostra-nos como ser realmente cristãos.


1 de Agosto de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Depois destas três semanas de pausa, retomamos os nossos habituais encontros da quarta-feira. Hoje desejo simplesmente relacionar-me com a última catequese, que tinha como tema a vida e os escritos de São Basílio, Bispo na actual Turquia, na Ásia Menor, no IV século. A existência deste grande Santo e as suas obras são ricas de temas de reflexão e de ensinamentos válidos também para nós hoje.

Antes de tudo a chamada ao mistério de Deus, que permanece a referência mais significativa e vital para o homem. O Padre é "o princípio de tudo e a causa de ser do que existe, a raiz dos vivos" (Hom. 15, 2 de fide: PG 31, 465c), e sobretudo é "o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (Anaphora sancti Basilii). Remontando a Deus através das criaturas, nós, "tomamos consciência da sua bondade e da sua sabedoria" (Basílio, Contra Eunomium 1, 14; PG 29, 544b). O Filho é a "imagem da bondade do Pai e sigilo de forma igual a ele" (cf. Anaphora sancti Basilii). Com a sua obediência e com a sua paixão o Verbo encarnado realizou a missão de Redentor do homem (cf. Basílio, In Psalmum 48, 8: PG 29, 452ab; cf. também De Baptismo 1, 2: SC 357, 158).

Por fim, ele fala amplamente do Espírito Santo, ao qual dedicou um livro inteiro. Revela-nos que o Espírito anima a Igreja, a enche dos seus dons, a torna santa. A luz maravilhosa do mistério divino reflecte-se sobre o homem, imagem de Deus, e eleva a sua dignidade. Olhando para Cristo, compreende-se plenamente a dignidade do homem. Basílio exclama: "[Homem], consciencializa-te da tua grandeza considerando o preço derramado por ti: olha para o preço do teu resgate, e compreende a tua dignidade!" (In Psalmum 48, 8: PG 29, 452b). Em particular o cristão, vivendo em conformidade com o Evangelho, reconhece que os homens são todos irmãos entre eles; que a vida é uma administração dos bens recebidos de Deus, pelos quais cada um é responsável perante os outros, e quem é rico deve ser como um "executor das ordens de Deus benfeitor" (Hom. 6 de avaritia: PG 32, 1181-1196). Todos nos devemos ajudar, e cooperar como os membros de um corpo (Ep 203, 3).

E ele, nas suas homilias, usou também palavras corajosas, fortes sobre este ponto. De facto, quem segundo o mandamento de Deus deseja amar o próximo como a si mesmo, "não deve possuir nada mais de quanto possui o seu próximo" (Hom. in divites: PG 31, 281b).

Em tempos de carestias e de calamidades, com palavras apaixonadas o Santo Bispo exortava os fiéis a "não se mostrarem mais cruéis que as feras..., apropriando-se do que é comum, e possuindo sozinhos o que é de todos" (Hom. tempore famis: PG 31, 325a). O pensamento profundo de Basílio sobressai bem nesta frase sugestiva: "Todas os necessitados olham para as nossas mãos, como nós próprios olhamos para as de Deus, quando estamos em necessidade". É muito apropriado o elogio feito por Gregório de Nazianzo, que depois da morte de Basílio disse: "Basílio persuadiu-nos de que nós, sendo homens, não devemos desprezar os homens, nem ultrajar Cristo, cabeça comum de todos, com a nossa desumanidade para com os homens; antes, nas desgraças dos outros, devemos beneficiar nós próprios, e fazer empréstimo a Deus da nossa misericórdia, porque temos necessidade de misericórdia" (Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 63; PG 36, 580b). São palavras muito actuais. Vemos como São Basílio é realmente um dos Padres da Doutrina Social da Igreja.

Além disso, Basílio recorda-nos que para manter vivo em nós o amor a Deus e aos homens é necessária a Eucaristia, alimento adequado para os Baptizados, capaz de alimentar as novas energias derivantes do Baptismo (cf. De Baptismo 1, 3: SC 357, 192). É motivo de imensa alegria poder participar na Eucaristia (Moralia 21, 3: PG 31, 741a), instituída "para conservar incessantemente a recordação daquele que morreu e ressuscitou por nós" (Moralia 80, 22: PG 31, 869b). A Eucaristia, imenso dom de Deus, tutela em cada um de nós a recordação do selo baptismal, e permite viver em plenitude e fidelidade a graça do Baptismo. Por isto o Santo Bispo recomenda a comunhão frequente, também quotidiana: "Comungar até todos os dias recebendo o santo corpo e sangue de Cristo é bom e útil; porque ele mesmo diz claramente: "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna" (Jo 6, 54). Portanto, quem duvidará de que comungar continuamente da vida não seja viver em plenitude?" (Ep. 93: PG 32, 484b). A Eucaristia, em síntese, é-nos necessária para acolhermos em nós a verdadeira vida, a vida eterna (cf. Moralia 21, 1: PG 31, 737c).

Por fim, Basílio interessou-se naturalmente também daquela porção eleita do povo de Deus que são os jovens, o futuro da sociedade. A eles dirigiu um Discurso sobre o modo de tirar proveito da cultura pagã desse tempo. Com muito equilíbrio e abertura, ele reconhece que na literatura clássica, grega e latina, se encontram exemplos de virtude. Estes exemplos de vida recta podem ser úteis para o jovem cristão em busca da verdade, do modo recto de viver (cf. Ad Adolescentes 3). Por isso, é preciso tirar dos textos dos autores clássicos tudo o que é conveniente e conforme com a verdade: assim com atitude crítica e aberta de facto trata-se de um verdadeiro e próprio "discernimento" os jovens crescem em liberdade. Com a célebre imagem das abelhas, que tiram das flores apenas o que serve para o mel, Basílio recomenda: "Como as abelhas sabem tirar das flores o mel, diferenciando-se dos outros animais que se limitam a gozar do perfume e da cor das flores, assim também destes escritos... se pode obter algum proveito para o espírito. Devemos utilizar estes livros seguindo em tudo o exemplo das abelhas. Elas não vão indistintamente a todas as flores, nem sequer procuram tirar tudo das flores nas quais pousam, mas tiram só o que serve para a elaboração do mel, e deixam o resto. E nós, se formos sábios, tiraremos daqueles escritos o que se adapta a nós, e é conforme à verdade, e deixaremos o resto" (Ad Adolescentes 4). Basílio, sobretudo, recomenda aos jovens que cresçam nas virtudes, no recto modo de viver: "Enquanto os outros bens... passam deste para aquele como no jogo dos dados, só a virtude é um bem inalienável, e permanece durante a vida e depois da morte" (Ad Adolescentes 5).

Queridos irmãos e irmãs, parece-me que se pode dizer que este Padre de outrora fala também a nós e nos diz coisas importantes. Antes de tudo, esta participação atenta, crítica e criativa para a cultura de hoje. Depois, a responsabilidade social: este é um tempo no qual, num mundo globalizado, também os povos geograficamente distantes são realmente o nosso próximo. Portanto, a amizade com Cristo, o Deus com rosto humano. E, por fim, o conhecimento e o reconhecimento a Deus Criador, Pai de todos nós: só abertos a este Deus, Pai comum, podemos construir um mundo justo e um mundo fraterno.


8 de Agosto de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Na passada quarta-feira falei de um grande mestre da fé, o Padre da Igreja São Basílio. Hoje gostaria de falar do seu amigo Gregório de Nazianzo, também ele, como Basílio, originário da Capadócia. Teólogo ilustre, orador e defensor da fé cristã no século IV, foi célebre pela sua eloquência, e teve também, como poeta, uma alma requintada e sensível.

Gregório nasceu de uma família nobre. A mãe consagrou-o a Deus desde o nascimento, que aconteceu por volta de 330. Depois da primeira educação familiar, frequentou as mais célebres escolas da sua época: primeiro foi a Cesareia da Capadócia, onde estreitou amizade com Basílio, futuro Bispo daquela cidade, e deteve-se em seguida noutras metrópoles do mundo antigo, como Alexandria do Egipto e sobretudo Atenas, onde encontrou de novo Basílio (cf. Oratio 14-24: SC 384, 146-180). Reevocando a sua amizade, Gregório escreverá mais tarde: "Então não só eu me sentia cheio de veneração pelo meu grande Basílio devido à seriedade dos seus costumes e à maturidade e sabedoria dos seus discursos, mas induzia a fazer o mesmo também a outros, que ainda não o conheciam... Guiava-nos a mesma ansiedade de saber... Esta era a nossa competição: não quem era o primeiro, mas quem permitisse ao outro de o ser. Parecia que tínhamos uma só alma em dois corpos" (Oratio 43, 16.20: SC 384, 154-156.164). São palavras que representam um pouco o auto-retrato desta alma nobre. Mas também se pode imaginar que este homem, que estava fortemente projectado para além dos valores terrenos, tenha sofrido muito pelas coisas deste mundo.

Tendo regressado a casa, Gregório recebeu o Baptismo e orientou-se para uma vida monástica: a solidão, a meditação filosófica e espiritual fascinavam-no. Ele mesmo escreverá: "Nada me parece maior do que isto: fazer calar os próprios sentidos, sair da carne do mundo, recolher-se em si mesmo, não se ocupar mais das coisas humanas, a não ser das que são estritamente necessárias; falar consigo mesmo e com Deus, levar uma vida que transcende as coisas visíveis; levar na alma imagens divinas sempre puras, sem misturar formas terrenas e erróneas; ser verdadeiramente um espelho imaculado de Deus e das coisas divinas, e tornar-se tal cada vez mais, tirando luz da luz...; gozar, na esperança presente, o bem futuro, e conversar com os anjos; ter já deixado a terra, mesmo estando na terra, transportado para o alto com o espírito" (Oratio 2, 7: SC 247, 96).

Como escreve na sua autobiografia (cf. Carmina [historica] 2, 1, 11 De vita sua 340-349: PG 37, 1053), recebeu a ordenação presbiteral com uma certa resistência, porque sabia que depois teria que ser Pastor, ocupar-se dos outros, das suas coisas, e portanto já não podia recolher-se só na meditação. Contudo aceitou depois esta vocação e assumiu o ministério pastoral em total obediência, aceitando, como com frequência lhe aconteceu na sua vida, ser guiado pela Providência aonde não queria ir (cf. Jo 21, 18). Em 371 o seu amigo Basílio, Bispo de Cesareia, contra o desejo do próprio Gregório, quis consagrá-lo Bispo de Sasima, uma Cidade extremamente importante da Capadócia. Mas ele, devido a várias dificuldades, nunca tomou posse dela e permaneceu na cidade de Nazianzo.

Por volta de 379, Gregório foi chamado a Constantinopla, a capital, para guiar a pequena comunidade católica fiel ao Concílio de Niceia e à fé trinitária. A maioria aderia ao contrário ao arianismo, que era "politicamente correcto" e considerado pelos imperadores útil sob o ponto de vista político. Deste modo ele encontrou-se em condições de minoria, circundado por hostilidades.

Na pequena igreja de Anastasis pronunciou cinco Discursos teológicos (Orationes 27-31: SC 250, 70-343) precisamente para defender e tornar também inteligível a fé trinitária, a habilidade do raciocínio, que faz compreender realmente que esta é a lógica divina. E também o esplendor da forma os torna hoje fascinantes. Gregório recebeu, devido a estes discursos, o apelativo de "teólogo". Assim é chamado na Igreja ortodoxa: o "teólogo". E isto porque para ele a teologia não é uma reflexão meramente humana, ou muito menos apenas o fruto de especulações complicadas, mas deriva de uma vida de oração e de santidade, de um diálogo assíduo com Deus. E precisamente assim mostra à nossa razão a realidade de Deus, o mistério trinitário. No silêncio contemplativo, imbuído de admiração diante das maravilhas do mistério revelado, a alma acolhe a beleza e a glória divina.

Enquanto participava no segundo Concílio Ecuménico de 381, Gregório foi eleito Bispo de Constantinopla, e assumiu a presidência do Concílio. Mas desencadeou-se imediatamente contra ele uma grande oposição, e a situação tornou-se insustentável. Para uma alma tão sensível estas inimizades eram insuportáveis. Repetia-se o que Gregório já tinha lamentado anteriormente com palavras ardentes: "Dividimos Cristo, nós que tanto amávamos Deus e Cristo! Mentimos uns aos outros devido à Verdade, alimentámos sentimentos de ódio devido ao Amor, dividimo-nos uns dos outros!" (Oratio 6, 3: SC 405, 128). Chega-se assim, num clima de tensão, à sua demissão. Na catedral apinhada Gregório pronunciou um discurso de despedida com grande afecto e dignidade (cf Oratio 42: SC 384, 48-114). Concluía a sua fervorosa intervenção com estas palavras: "Adeus, grande cidade, amada por Cristo... Meus filhos, suplico-vos, guardai o depósito [da fé] que vos foi confiado (cf. 1 Tm 6, 20), recordai-vos dos meus sofrimentos (cf. Cl 4, 18). Que a graça do nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós" (cf. Oratio 42, 27: SC 384, 112-114).

Regressou a Nazianzo, e por cerca de dois anos dedicou-se ao cuidado pastoral daquela comunidade cristã. Depois retirou-se definitivamente em solidão na vizinha Arianzo, a sua terra natal, dedicando-se ao estudo e à vida ascética. Nesse período compôs a maior parte da sua obra poética, sobretudo autobiográfica: o De vita sua, uma releitura em versos do próprio caminho humano e espiritual, um caminho exemplar de um cristão sofredor, de um homem de grande interioridade num mundo cheio de conflitos. É um homem que nos faz sentir a primazia de Deus e por isso fala também a nós, a este nosso mundo: sem Deus o homem perde a sua grandeza, sem Deus não há verdadeiro humanismo. Por isso, ouçamos esta voz e procuremos conhecer também nós o rosto de Deus. Numa das suas poesias escrevera, dirigindo-se a Deus: "Sê benigno, Tu, o Além de tudo" (Carmina [dogmatica] 1, 1, 29: PG 37, 508). E em 390 Deus acolheu nos seus braços este servo fiel, que com inteligência perspicaz tinha defendido nos escritos, e com tanto amor o tinha cantado nas suas poesias.


22 de Agosto de 2007

Queridos irmãos e irmãs

Ao longo dos retratos dos grandes Padres e Doutores da Igreja que procuro oferecer nestas catequeses, a última vez falei de São Gregório Nazianzeno, Bispo do século IV, e hoje gostaria ainda de completar o retrato deste grande mestre. Procuraremos reunir alguns dos seus ensinamentos. Reflectindo sobre a missão que Deus lhe tinha confiado, São Gregório Nazianzeno concluía: "Fui criado para me elevar até Deus com as minhas acções!" (Oratio 14, 6 de pauperum amore: PG: 35, 865). De facto, ele colocou ao serviço de Deus e da Igreja o seu talento de escritor e de orador. Compôs numerosos discursos, várias homilias e panegíricos, muitas cartas e obras poéticas (quase 18.000 versos!): uma actividade verdadeiramente prodigiosa. Tinha compreendido que era essa a missão que Deus lhe confiara: "Servo da Palavra, eu adiro ao ministério da Palavra; que eu nunca consinta o descuido deste bem. Eu aprecio esta vocação e desejo-a, ela proporciona-me mais alegria do que todas as outras coisas juntas" (Oratio 6, 5: SC 405, 134; cf. também Oratio 4, 10).

O Nazianzeno era um homem mansueto, e na sua vida procurou fazer sempre obra de paz na Igreja do seu tempo, dilacerada por discórdias e heresias. Com audácia evangélica esforçou-se por superar a própria timidez para proclamar a verdade da fé. Sentia profundamente o anseio de se aproximar de Deus, de se unir a Ele. É quanto ele mesmo expressa numa sua poesia, na qual escreve: entre as "grandes flutuações do mar da vida, aqui e além por ventos impetuosos agitado, ... / uma só coisa me era querida, unicamente a minha riqueza, / conforto e olvido das canseiras, / a luz da Trindade Santa" (Carmina [historica] 2, 1, 15: PG 37, 1250ss.).

Gregório fez resplandecer a luz da Trindade, defendendo a fé proclamada no Concílio de Niceia: um só Deus em três Pessoas iguais e distintas Pai, Filho e Espírito Santo "tríplice luz que num único / esplendor se reúne" (Hino vespertino: Carmina [historica] 2, 1, 32: PG 37, 512). Portanto, afirma sempre Gregório no seguimento de São Paulo (1 Cor 8, 6), "para mim existe um Deus, o Pai, do qual tudo provém; um Senhor, Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe; e um Espírito Santo, no qual tudo existe" (Oratio 39, 12: SC 358, 172).

Gregório pôs em grande relevo a humanidade plena de Cristo: para redimir o homem na sua totalidade de corpo, alma e espírito, Cristo assumiu todas as componentes da natureza humana, porque de outro modo o homem não teria sido salvo. Contra a heresia de Apolinário, o qual defendia que Jesus não tinha assumido uma alma racional, Gregório enfrenta o problema à luz do mistério da salvação: "O que não foi assumido, não foi curado (Ep. 101, 32: SC 208, 50), e se Cristo não tivesse sido "dotado de intelecto racional, como teria podido ser homem?" (Ep. 101, 34: SC 208, 50). Era precisamente o nosso intelecto, a nossa razão que tinha e tem necessidade da relação, do encontro com Deus em Cristo. Tornando-se homem, Cristo deu-nos a possibilidade de nos tornarmos por nossa vez como Ele. O Nazianzeno exorta: "Procuremos ser como Cristo, porque também Cristo se tornou como nós: tornar-nos deuses por meio d'Ele, dado que Ele mesmo, através de nós, se tornou homem. Assumiu sobre si o pior, para nos doar o melhor" (Oratio 1, 5: SC 247, 78).

Maria, que deu a Cristo a natureza humana, é verdadeira Mãe de Deus (Theotókos: cf. Ep. 101, 16: SC 208, 42), e em vista da sua altíssima missão foi "pré-purificada" (Oratio 38, 13: SC 358, 132, quase um distante prelúdio do dogma da Imaculada Conceição). Maria é proposta como modelo aos cristãos, sobretudo às virgens, e como socorro a ser invocada nas necessidades (cf. Oratio 24, 11: SC 282, 60-64).

Gregório recorda-nos que, como pessoas humanas, devemos ser solidários uns com os outros. Escreve: ""Todos nós somos uma só coisa no Senhor" (cf. Rm 12, 5), ricos e pobres, escravos e livres, sadios e doentes; e única é a cabeça da qual tudo provém: Jesus Cristo. E como fazem os membros de um só corpo, cada um se ocupe do outro, e todos de todos". Depois, referindo-se aos doentes e às pessoas em dificuldade, conclui: "Esta é a única salvação para a nossa carne e para a nossa alma: a caridade para com eles" (Oratio 14, 8 de pauperum amore: PG 35, 868ab).

Gregório ressalta que o homem deve imitar a bondade e o amor de Deus, e portanto recomenda: "Se és sadio e rico, alivia a necessidade de quem é doente e pobre; se não caíste, socorre quem caiu e vive no sofrimento; se és feliz, conforta quem está triste; se tens sorte, ajuda quem está aflito pela desventura. Dá a Deus uma prova de reconhecimento, porque és um dos que podem beneficiar, e não dos que têm necessidade de ser beneficiados... Sê rico não só de bens, mas também de piedade; não só de ouro, mas de virtude, ou melhor, unicamente dela. Supera a fama do teu próximo mostrando-te melhor de todos; entrega-te a Deus pelo desaventurado, imitando a misericórdia de Deus" (Oratio 14, 26 de pauperum amore: PG 35, 892bc).

Gregório ensina-nos antes de tudo a importância e a necessidade da oração. Ele afirma que "é necessário recordar-se de Deus com mais frequência de quanto se respira" (Oratio 27, 4: PG 250, 78), porque a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa sede. Deus tem sede de que nós tenhamos sede d'Ele (cf. Oratio 40, 27: SC 358, 260). Na oração devemos dirigir o nosso coração para Deus, a fim de nos entregarmos a Ele como oferenda para purificar e transformar. Na oração vemos tudo à luz de Cristo, deixamos cair as nossas máscaras imergimo-nos na verdade e na escuta de Deus, alimentando o fogo do amor.

Numa poesia que é ao mesmo tempo meditação sobre a finalidade da vida e vocação implícita para Deus, Gregório escreve: "Tens uma tarefa, ó minha alma / Uma grande tarefa, se quiseres. / Perscruta seriamente a ti mesma, / o teu ser, o teu destino; / de onde vens e onde deverás pousar; / procura conhecer se é vida a que vives / ou se há algo mais. / Tens uma tarefa, ó minha alma, / portanto purifica a tua vida: / considera, por favor, Deus e os seus mistérios, / indaga o que há antes deste universo / e o que ele é para ti, / de onde veio, e qual será o seu destino. / Eis a tua tarefa, / ó minha alma, / purifica, portanto a tua vida" (Carmina [historica] 2, 1, 78: PG 37, 1425-1426). Continuamente o Santo Bispo pede ajuda a Cristo, para se erguer e retomar o caminho: "Fui desiludido, ó meu Cristo, / pelo meu demasiado presumir: / das alturas caí muito em baixo. / Mas eleva-me de novo agora, porque vejo / que por mim próprio me enganei; / se ainda confiar demais em mim mesmo, / cairei de novo, e a queda será fatal" (Carmina [historica] 2, 1, 67: PG 37, 1408).

Portanto, Gregório sentiu a necessidade de se aproximar de Deus para superar o cansaço do próprio eu. Experimentou o impulso da alma, a vivacidade de um espírito sensível e a instabilidade da felicidade efémera. Para ele, no drama de uma vida sobre a qual pesava a consciência da própria debilidade e da própria miséria, a experiência do amor de Deus sempre teve a supremacia.

Tens uma tarefa, alma diz São Gregório também a nós a tarefa de encontrar a verdadeira luz, de encontrar a verdadeira altura da tua vida. E a tua vida é encontrar-te com Deus, que tem sede da nossa sede.



29 de Agosto de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Nas últimas catequeses falei de dois grandes Doutores da Igreja do século IV, Basílio e Gregório Nazianzeno, Bispo na Capadócia, na actual Turquia. Hoje acrescento um terceiro, o irmão de Basílio, São Gregório de Nissa, que mostrou ser homem de carácter meditativo, com grandes capacidades de reflexão, e com uma inteligência vivaz, aberta à cultura do seu tempo. Revelou-se assim um pensador original e profundo na história do cristianismo.

Nasceu por volta de 335; a sua formação cristã foi cuidada particularmente pelo irmão Basílio por ele definido "pai e mestre" (Ep. 13, 4; SC 363, 198) e pela irmã Macrina. Realizou os estudos, apreciando particularmente a filosofia e a rectórica. Num primeiro tempo dedicou-se ao ensino e casou-se. Depois também ele, como o irmão e a irmã, se dedicou totalmente à vida ascética. Mais tarde foi eleito Bispo de Nissa, e demonstrou-se um pastor zeloso, a ponto de atrair a estima da comunidade. Acusado de má administração económica pelos adversários heréticos, teve que abandonar por um período breve a sua sede episcopal, mas regressou depois em triunfo (cf. Ep. 6: SC 363, 164-170), e continuou a empenhar-se na luta para defender a verdadeira fé.

Sobretudo depois da morte de Basílio, quase recebendo a sua herança espiritual, cooperou no triunfo da ortodoxia. Participou em vários sínodos; procurou resolver os contrastes entre as Igrejas; participou activamente na reorganização eclesiástica e, como "coluna da ortodoxia", foi um protagonista do Concílio de Constantinopla de 381, que definiu a divindade do Espírito Santo.

Desempenhou vários cargos oficiais que lhe foram confiados pelo imperador Teodósio, pronunciou importantes homilias e discursos fúnebres, dedicou-se a compor várias obras teológicas. Em 394 participou ainda num sínodo realizado em Constantinopla. Não se conhece a data da sua morte.

Gregório expressa com clareza a finalidade dos seus estudos, a finalidade suprema que se propunha no seu trabalho de teólogo: não empregar a vida em coisas vãs, mas encontrar a luz que permita discernir o que é verdadeiramente útil (cf. In Ecclesiasten hom. 1: SC 416, 106-146). Encontrou este bem supremo, no cristianismo, graças ao qual é possível "a imitação da natureza divina" (De professione christiana: PG 46, 244C). Com a sua inteligência perspicaz e com os seus vastos conhecimentos filosóficos e teológicos, defendeu a fé cristã contra os hereges, que negavam a divindade do Filho e do Espírito Santo (como Eunómio e os macedónios), ou comprometiam a humanidade perfeita de Cristo (como Apolinário). Comentou a Sagrada Escritura, detendo-se sobre a criação do homem. Este era para ele um tema central: a criação. Via na criatura o reflexo do Criador e encontrava aqui o caminho para Deus. Mas escreveu também um importante livro sobre a vida de Moisés, que apresenta como homem a caminho para Deus: esta subida ao Monte Sinai torna-se para ele uma imagem da nossa subida da vida humana para a vida verdadeira, para o encontro com Deus. Ele interpretou também a oração do Senhor, o Pai-Nosso, e as Bem-Aventuranças. No seu "Grande discurso catequético" (Oratio catechetica magna) expôs as linhas fundamentais da teologia, não para uma teologia académica fechada em si mesma, mas para oferecer aos catequistas um sistema de referência a ter presente nas suas instruções, quase o quadro no qual se move depois a interpretação pedagógica da fé.

Além disso, Gregório é insigne pela sua doutrina espiritual. Toda a sua teologia não era uma reflexão académica, mas expressão de uma vida espiritual, de uma vida de fé vivida. Como grande "pai da mística" perspectivou em vários tratados como o De professione christiana e o De perfectione christiana o caminho que os cristãos devem empreender para alcançar a vida verdadeira, a perfeição. Exaltou a virgindade consagrada (De virginitate), e propôs um seu modelo insigne na vida da irmã Macrina, que para ele permaneceu sempre uma guia, um exemplo (cf. Vita Macrinae). Proferiu vários discursos e homilias e escreveu numerosas cartas.

Comentando a criação do homem, Gregório ressaltou que Deus, "o melhor dos artistas, forja a nossa natureza de modo a torná-la apta para a prática da realeza. Através da superioridade estabelecida pela alma, e através da própria conformação do corpo, Ele dispõe as coisas de maneira que o homem seja realmente adequado para o poder real" (De hominis opificio 4: PG 44, 136B). Mas vemos como o homem, na rede dos pecados, muitas vezes abusa da criação e não exerce uma verdadeira realeza. Por isso, de facto, para realizar uma verdadeira responsabilidade para com as criaturas, deve estar imbuído de Deus e viver na sua luz. De facto, o homem é um reflexo daquela beleza originária que é Deus: "Tudo o que Deus criou era muito bom", escreve o santo Bispo. E acrescenta: "Disto dá testemunho a narração da criação (cf. Gn 1, 31). Entre as coisas muito boas estava também o homem, ornamentado com uma beleza muito superior a todas as coisas belas. Com efeito, o que mais poderia ser belo na mesma medida de quem era semelhante à beleza pura e incorruptível?... Reflexo e imagem da vida eterna, ele era verdadeiramente belo, aliás muito belo, com o sinal radiante da vida sobre o seu rosto" (Homilia in Canticum 12: PG 44, 1020C).

O homem foi honrado por Deus e colocado acima de todas as outras criaturas: "Não foi o céu a ser feito à imagem de Deus, nem a lua, nem o sol, nem a beleza das estrelas, nem qualquer uma das outras coisas que existem na criação. Só tu (a alma humana) foste tornada imagem da natureza que domina qualquer intelecto, semelhança da beleza incorruptível, sinal da verdadeira divindade, receptáculo da vida feliz, imagem da verdadeira luz, na qual, olhando para ela, te tornas aquilo que Ele é, porque por meio do raio reflectido proveniente da tua pureza imitas Aquele que brilha em ti.

Nenhuma outra coisa que existe é tão grande que se possa comparar com a tua grandeza" (Homilia in Canticum 2: PG 44, 805D). Meditemos este elogio do homem. Vemos também como o homem é degradado pelo pecado. E procuremos voltar à grandeza originária: só se Deus estiver presente, o homem alcança esta sua verdadeira grandeza.

Portanto, o homem reconhece dentro de si o reflexo da luz divina: purificando o seu coração, ele volta a ser, como era no princípio, uma imagem límpida de Deus, Beleza exemplar (cf. Oratio catechetica 6: SC 453, 174). Assim o homem, purificando-se, pode ver Deus, como os puros de coração (cf. Mt 5, 8): "Se, com um nível de vida diligente e atento, lavares as impurezas que se depositaram no teu coração, resplandecerá em ti a beleza divina... Contemplando a ti mesmo, verás em ti Aquele que é o desejo do teu coração, e serás feliz" (De beatitudinibus, 6: PG 44, 1272AB). Portanto: lavar as impurezas que se depositaram no nosso coração e reencontrar em nós mesmos a luz de Deus.

Portanto o homem tem como finalidade a contemplação de Deus. Só nela poderá encontrar a sua satisfação. Para antecipar em certa medida este objectivo já nesta vida, ele deve progredir incessantemente para uma vida espiritual, uma vida de diálogo com Deus. Por outras palavras e é esta a lição mais importante que São Gregório de Nissa nos dá a realização plena do homem consiste na santidade, numa vida vivida no encontro com Deus, que assim se torna luminosa também para os outros, também para o mundo.


5 de Setembro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Proponho-vos alguns aspectos da doutrina de São Gregório de Nissa, do qual já falámos na quarta-feira passada. Antes de tudo, Gregório de Nissa manifesta uma concepção muito elevada da dignidade do homem. O fim do homem, diz o santo Bispo, é tornar-se semelhante a Deus, e este fim alcança-o sobretudo através do amor, do conhecimento e da prática das virtudes, "raios luminosos que provêm da natureza divina" (De beatitudinibus 6: PG 44, 1272C), num movimento perpétuo de adesão ao bem, como o corredor está inclinado para a frente. Gregório usa, a este propósito, uma imagem eficaz, já presente na Carta de Paulo aos Filipenses: épekteinómenos (3, 13), isto é "inclinando-me" para o que é maior, para a verdade e o amor. Esta expressão icástica indica uma realidade profunda: a perfeição que desejamos encontrar não é uma coisa conquistada para sempre; perfeição é este permanecer a caminho, é uma contínua disponibilidade a ir em frente, porque nunca se alcança a semelhança plena com Deus; estamos sempre a caminho (cf. Homilia in Canticum 12: PG 44, 1025d). A história de cada alma é a de um amor sempre colmado, e ao mesmo tempo aberto a novos horizontes, porque Deus dilata continuamente as possibilidades da alma, para a tornar capaz de bens sempre maiores. O próprio Deus, que depôs em nós os germes de bem, e do qual parte qualquer inciativa de santidade, "modela o bloco...

Limando e limpando o nosso espírito, forma em nós o Cristo" (In Psalmos 2, 11; PG 44, 544B).
Gregório preocupa-se por esclarecer: "De facto, não é obra nossa, nem sequer o êxito de um poder humano tornar-se semelhantes à Divindade, mas é o resultado da munificência de Deus, que desde a sua primeira origem ofereceu à nossa natureza a graça da semelhança com Ele" (De virginitate 12, 2: SC 119, 408-410). Portanto, para a alma "não se trata de conhecer algo de Deus, mas de ter em si Deus" (De beatitudinibus 6: PG 44, 1269c). De resto, observa perspicazmente Gregório, "a divindade é pureza, é libertação das paixões e eliminação de qualquer mal: se todas estas coisas estão em ti, Deus está realmente em ti" (De beatitudinibus 6: PG 44, 1272C).

Quando temos Deus em nós, quando o homem ama Deus, por aquela reciprocidade que é própria da lei do amor, ele deseja aquilo que o próprio Deus deseja (cf. Homilia in Canticum 9: PG 44, 956ac), e por conseguinte coopera com Deus para modelar em si a imagem divina, de modo que "o nosso nascimento espiritual é o resultado de uma livre opção, e nós somos de certa forma os genitores de nós próprios, criando-nos como nós mesmos queremos ser, e por nossa vontade formando-nos segundo o modelo que escolhemos" (Vita Moysis 2, 3: SC 1bis, 108). A fim de ascender para Deus, o homem deve purificar-se: "A vida, que conduz à natureza humana para o céu, mais não é do que o afastamento dos males deste mundo... Tornar-se semelhante a Deus significa tornar-se justo, santo e bom... Portanto, se segundo Eclesiastes (5, 1), "Deus está no céu" e se, segundo o profeta (Sl 72, 28), vós "aderis a Deus", isso obriga-vos necessariamente a estar onde está Deus, porque estais unidos a Ele. Visto que Ele vos deu o mandamento de que, quando rezais, chameis Deus Pai, diz-vos que vos torneis sem dúvida semelhantes ao vosso Pai celeste, com uma vida digna de Deus, como o Senhor nos ordena mais claramente noutra parte, dizendo: "Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste!" (Mt 5, 48)" (De oratione dominica 2: PG 44, 1145ac).

Neste caminho de ascensão espiritual, Cristo é o modelo e o mestre, que nos mostra a bela imagem de Deus (cf. De perfectione christiana: PG 46, 272a). Cada um de nós, olhando para Ele, se torna "o pintor da própria vida", que tem a vontade como executora do trabalho e as virtudes como cores das quais se servir (ibid.: PG 46, 272b). Portanto, se o homem é considerado digno do nome de Cristo, como se deve comportar? Gregório responde assim: "[Deve] examinar sempre no seu íntimo os próprios pensamentos, as próprias palavras e acções, para ver se estão orientadas para o Senhor ou se se afastam dele" (ibid.: PG 46, 284c). E este ponto é importante para o valor que dá à palavra cristão. Cristão é alguém que tem o nome de Cristo e portanto deve parecer-se com Ele também na vida. Nós, cristãos, com o Baptismo assumimos uma grande responsabilidade.
Mas Cristo recorda Gregório está presente também nos pobres, razão pela qual eles nunca devem ser ultrajados: "Não desprezar aqueles que jazem deitados, como se por isso nada valessem.

Considera quem são, e descobrirás qual é a sua dignidade: eles representam a Pessoa do Salvador. E é assim: porque o Senhor, na sua bondade, lhes emprestou a sua própria Pessoa, para que, por meio dela, se sintam compadecidos todos os que têm os corações endurecidos e são inimigos dos pobres" (De pauperibus amandis: PG 46, 460bc). Gregório, como dissemos, fala de subida: subida para Deus na oração mediante a pureza do coração; mas subida para Deus também mediante o amor ao próximo. O amor é a escada que guia para Deus. Por conseguinte, o Nisseno exorta vivazmente cada um dos seus ouvintes: "Sê generoso com estes irmãos, vítimas da desventura. Dá ao faminto aquilo de que te privas" (ibid.: PG 46, 457c).

Com muita clareza Gregório recorda que todos dependemos de Deus, e por isso exclama: "Não penseis que tudo é vosso! Deve haver também uma parte para os pobres, os amigos de Deus. De facto, a verdade é que tudo provém de Deus, Pai universal, e que nós somos irmãos, e pertencemos à mesma raça" (ibid.: PG 46, 465b). E então o cristão examine-se, insiste ainda Gregório: "Mas para que te serve jejuar e fazer abstinência da carne, se depois com a tua malvadez agrides o teu irmão? Que vantagem tiras, perante Deus, do facto de não comeres do teu, se depois, agindo como injusto, arrancas das mãos dos pobres o que é seu?" (ibid.: PG 46,456a).

Concluamos estas nossas catequeses sobre os três grandes Padres Capadócios recordando mais uma vez este aspecto importante da doutrina espiritual de Gregório de Nissa, que é a oração. Para progredir no caminho rumo à perfeição e acolher Deus em si, levar em si o Espírito Santo, o amor de Deus, o homem deve dirigir-se a Ele com confiança na oração: "Através da oração conseguimos estar com Deus. Mas quem está com Deus está longe do inimigo. A oração é apoio e defesa da castidade, impedimento para a ira, apaziguamento e domínio da soberba. A oração é guarda da virgindade, protecção da fidelidade no matrimónio, esperança para quantos vigiam, abundância de frutos para os agricultores, segurança para os navegantes" (De oratione dominica 1: PG 44, 1124A-B). O cristão reza inspirando-se sempre na oração do Senhor: "Se queremos portanto rezar para que desça sobre nós o Reino de Deus, peçamos-lhe isto com o poder da Palavra: que eu seja afastado da corrupção, libertado da morte, libertado das correntes do erro; nunca reine a morte sobre mim, nunca tenha poder sobre nós a tirania do mal, nunca me domine o adversário nem me faça prisioneiro através do pecado, mas desça sobre mim o teu Reino, para que se afastem de mim ou, ainda melhor, se anulem as paixões que agora me dominam e comandam" (ibid., 3: PG 44, 1156d-1157a).

Tendo terminado a sua vida terrena, o cristão poderá assim dirigir-se com serenidade para Deus. Falando disto São Gregório pensa na morte da irmã Macrina e escreve que ela no momento da morte assim rezava a Deus: "Tu que na terra tens o poder de perdoar os pecados "perdoa-me, para que eu possa ter repouso" (Sl 38, 14), e para que, diante de ti, eu seja sem mancha, no momento em que for despojada do meu corpo (cf. Cl 2, 11), de forma que o meu espírito, santo e imaculado (cf. Ef 5, 27), seja recebido nas tuas mãos, "como incenso diante de ti" (Sl 140, 2)" (Vita Macrinae 24: SC 178, 224). Este ensinamento de São Gregório permanece válido sempre: não só falar de Deus, mas levar Deus em si. Façamo-lo com o compromisso da oração e vivendo no espírito do amor por todos os nossos irmãos.


19 de Setembro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Celebra-se este ano o 16º centenário da morte de São João Crisóstomo (407-2007). Pode-se dizer que João de Antioquia, chamado Crisóstomo, isto é "Boca de ouro", ainda hoje está vivo devido à sua eloquência e também às suas obras. Um copista anónimo deixou escrito que elas "atravessam toda a terra como relâmpagos buliçosos". Os seus escritos permitem também a nós, como aos fiéis do seu tempo, que foram repetidamente privados dele por causa dos seus exílios, de viver com os seus livros, apesar da sua ausência. Foi quanto ele próprio sugeriu do exílio numa sua carta (cf. A Olimpiade, Carta 8, 45).

Nascido por volta de 349 em Antioquia da Síria (hoje Antakaya, no sul da Turquia), ali desempenhou o ministério presbiteral durante onze anos, até 397, quando, nomeado Bispo de Constantinopla, exerceu na capital do Império o ministério episcopal antes dos dois exílios, que foram um a pouco tempo do outro, entre 403 e 407. Limitamo-nos hoje a considerar os anos antioquenos de Crisóstomo.

Tendo ficado órfão de pai em tenra idade, viveu com a mãe, Antusa, que lhe transmitiu uma requintada sensibilidade humana e uma profunda fé cristã. Tendo frequentado os estudos primários e superiores, coroados pelos cursos de filosofia e retórica, teve como mestre Libânio, pagão, o mais célebre mestre de retórica da época. Na sua escola, João tornou-se o maior orador da antiguidade grega tardia. Baptizado em 368 e formado na vida eclesiástica pelo Bispo Melézio, foi por ele instituído leitor em 371. Este acontecimento marcou a entrada oficial de Crisóstomo no cursus eclesiástico. Frequentou, de 367 a 372, o asceterio, uma espécie de siminário de Antioquia, juntamente com um grupo de jovens, alguns dos quais se tornaram depois Bispos, sob a guia do famoso exegeta Diodoro de Tarso, que iniciou João na exegese histórico-literária, característica da tradição antioquena.

Retirou-se depois durante quatro anos entre os eremitas no vizinho monte Silpio. Prosseguiu aquele retiro por outros dois anos, que viveu sozinho numa gruta sob a orientação de um "idoso". Naquele período dedicou-se totalmente à meditação "das leis de Cristo", dos Evangelhos e especialmente das Cartas de Paulo. Tendo adoecido, encontrou-se impossibilitado de se curar sozinho, e por isso teve que regressar à comunidade cristã de Antioquia (cf. Palladio, Vita 5). O Senhor explica o biógrafo interveio com a enfermidade no momento justo para permitir que João seguisse a sua verdadeira vocação. De facto, escreverá ele mesmo que, colocado na alternativa de escolher entre as adversidades do governo da Igreja e a tranquilidade da vida monástica, teria preferido mil vezes o serviço pastoral (cf. Sul sacerdocio, 6, 7): precisamente para isto Crisóstomo se sentia chamado. E realiza-se aqui a mudança decisiva da sua história vocacional: pastor de almas a tempo inteiro! A intimidade com a Palavra de Deus, cultivada durante os anos da eremitério, tinha amadurecido nele a urgência irresistível de pregar o Evangelho, de doar aos outros o que tinha recebido nos anos da meditação. O ideal missionário lançou-o assim, alma de fogo, no cuidado pastoral.

Entre 378 e 379 regressou à cidade. Diácono em 381 e presbítero em 386, tornou-se célebre pregador nas igrejas da sua cidade. Pronunciou homilias contra os arianos, seguidas pelas comemorativas dos mártires antioquenos e por outras sobre as principais festas litúrgicas: trata-se de um grande ensinamento da fé em Cristo, também à luz dos seus Santos. O ano de 387 foi "o ano heróico" de João, o da chamada "revolta das estátuas". O povo derrubou as estátuas imperiais, em sinal de protesto contra o aumento das taxas. Naqueles dias de Quaresma e de angústia por causa das punições infligidas por parte do imperador, ele pronunciou as suas 22 vibrantes homilias sobre as estátuas, finalizadas à penitência e à conversão. Seguiu-se o período da serena actividade pastoral (387-397).

Crisóstomo coloca-se entre os Padres mais fecundos: dele chegaram até nós 17 tratados, mais de 700 homilias autênticas, os comentários a Mateus e a Paulo (Cartas aos Romanos, aos Coríntios, aos Efésios e aos Hebreus), e 241 cartas. Não foi um teólogo especulativo. Mas transmitiu a doutrina tradicional e segura da Igreja numa época de controvérsias teológicas suscitadas sobretudo pelo arianismo, isto é, pela negação da divindade de Cristo. Portanto, ele é uma testemunha credível do desenvolvimento dogmático alcançado pela Igreja nos séculos IV-V. A sua é uma teologia requintadamente pastoral, na qual é constante a preocupação da coerência entre o pensamento expresso pela palavra e a vivência existencial. É este, em particular, o fio condutor das maravilhosas catequeses, com as quais preparava os catecúmenos para receber o Baptismo.

Próximo da morte, escreveu que o valor do homem consiste no "conhecimento exacto da verdadeira doutrina e na rectidão da vida" (Carta do exílio). As duas coisas, conhecimento da verdade e rectidão na vida, caminham juntas: o conhecimento deve traduzir-se em vida. Cada uma das suas intervenções tinha sempre por finalidade desenvolver nos fiéis o exercício da inteligência, da verdadeira razão, para compreender e traduzir em prática as exigências morais e espirituais da fé.

João Crisóstomo preocupa-se por acompanhar com os seus escritos o desenvolvimento integral da pessoa, nas dimensões física, intelectual e religiosa. As várias fases do crescimento são comparadas a outros tantos mares de um oceano imenso: "O primeiro destes mares é a infância" (Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). De facto "precisamente nesta primeira idade se manifestam as inclinações para o vício e para a virtude". Por isso a lei de Deus deve ser desde o início impressa na alma "como numa tábua de cera" (Homilia 3, 1 sobre o Evangelho de João): de facto esta é a idade mais importante. Devemos ter presente como é fundamental que nesta primeira fase da vida entrem realmente no homem as grandes orientações que dão perspectiva justa à existência. Por isso Crisóstomo recomenda: "Precavei as crianças desde a mais tenra idade com armas espirituais, e ensinai-lhes a persignar a fronte com a mão" (Homilia 12, 7 sobre a primeira Carta aos Coríntios). Vêm depois a adolescência e a juventude: "à infância segue-se o mar da adolescência, onde os ventos sopram violentos..., porque cresce em nós... a concupiscência" (Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). Por fim, chegam o noivado e o matrimónio: "À juventude segue-se a idade da pessoa madura, na qual chegam os compromissos de família: é o tempo de procurar esposa" (ibid.). Do matrimónio, ele recorda as finalidades, enriquecendo-as com a referência à virtude da temperança de uma rica trama de relações personalizadas. Os esposos bem preparados impedem o caminho do divórcio: tudo se desenvolve com alegria e podem-se educar os filhos para a virtude. Depois, quando nasce o primeiro filho, ele é "como uma ponte; os três tornam-se uma só carne, porque o filho une as duas partes" (Homilia 12, 5 sobre a Carta aos Colossences), e os três constituem "uma família, pequena Igreja" (Homilia 20, 6 sobre a Carta aos Efésios).

A pregação de Crisóstomo realizava-se habitualmente durante a liturgia, "lugar" no qual a comunidade se constrói com a Palavra e com a Eucaristia. Nela, a assembleia reunida expressa a única Igreja (Homilia 8, 7 sobre a Carta aos Romanos), a mesma palavra dirige-se em qualquer lugar a todos (Homilia 24, 2 sobre a primeira Carta aos Coríntios), e a comunhão eucarística torna-se sinal eficaz de unidade (Homilia 32, 7 sobre o Evangelho de Mateus). O seu projecto pastoral estava inserido na vida da Igreja, na qual os fiéis leigos com o Baptismo assumem o ofício sacerdotal, real e profético. Ele diz ao fiel leigo: "Também a ti o Baptismo torna rei, sacerdote e profeta" (Homilia 3, 5 sobre a segunda Carta aos Coríntios). Provém daqui o dever fundamental da missão, porque cada um de certa forma é responsável da salvação dos outros: "Este é o princípio da nossa vida social... não nos interessarmos apenas de nós!" (Homilia 9, 2 sobre o Génesis). Tudo isto se desenvolve entre dois pólos: a grande Igreja e a "pequena Igreja", a família, em relação recíproca.

Como podeis ver, queridos irmãos e irmãs, esta lição de Crisóstomo sobre a presença autenticamente cristã dos fiéis na família e na sociedade, permanece ainda hoje actual como nunca. Rezemos ao Senhor para que nos torne dóceis aos ensinamentos deste grande Mestre da fé.


26 de Setembro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Continuamos hoje a nossa reflexão sobre São João Crisóstomo. Depois do período passado em Antioquia, em 397 ele foi nomeado Bispo de Constantinopla, a capital do Império romano do Oriente. Desde o início, João projectou a reforma da sua Igreja: a austeridade do palácio episcopal devia servir de exemplo para todos clero, viúvas, monges, palacianos e ricos.

Infelizmente, muitos destes, atingidos pelos seus juízos, afastaram-se dele. Solícito pelos pobres, João foi chamado também "Esmoler". De facto, como administrador atento ele conseguiu criar instituições caritativas muito apreciadas. O seu arrojo nos vários âmbitos fez com que ele se tornasse para alguns um rival perigoso. Ele, contudo, como verdadeiro Pastor, tratava todos de modo cordial e paterno. Sobretudo, destinava considerações sempre ternas às mulheres e cuidados especiais ao matrimónio e à família. Convidava os fiéis a participar na vida litúrgica, por ele tornada esplendorosa e atraente com genial criatividade.

Não obstante o coração generoso, não teve uma vida tranquila. Pastor da capital do Império, viu-se com frequência envolvido em questões e intrigas políticas, devido aos seus contínuos relacionamentos com as autoridades e as instituições civis. Depois, a nível eclesiástico foi acusado de ter superado os confins da própria jurisdição, e tornou-se assim alvo de fáceis acusações. Outro pretexto contra ele foi a presença de alguns monges egípcios, excomungados pelo patriarca Teófilo de Alexandria que se refugiaram em Constantinopla. Uma acesa polémica foi depois originada pelas críticas feitas por Crisóstomo à imperatriz Eudóxia e às suas palacianas, que reagiram desacreditando-o e insultando-o. Chegou-se assim à sua deposição, no sínodo organizado pelo mesmo patriarca Teófilo em 403, com a consequente condenação ao primeiro breve exílio. Depois do seu regresso, a hostilidade suscitada contra ele desde o protesto contra as festas em honra da imperatriz que o Bispo considerava como festas pagãs, sumptuosas e a expulsão dos presbíteros encarregados dos Baptismos na Vigília pascal de 404 marcaram o início da perseguição de Crisóstomo e dos seus seguidores, os chamados "Joanitas".

Então João denunciou através de carta os factos ao Bispo de Roma, Inocêncio I. Mas já era demasiado tarde. No ano de 406 teve de novo que se refugiar no exílio, desta vez em Cucusa, na Arménia. O Papa estava convencido da sua inocência, mas não tinha o poder de o ajudar. Um Concílio, querido por Roma para uma pacificação entre as duas partes do Império e entre as suas Igrejas, não pôde ser realizado. O deslocamento extenuante de Cucusa para Pytius, meta nunca alcançada, devia impedir as visitas dos fiéis e interromper a resistência do exiliado extenuado: a condenação ao exílio foi uma verdadeira condenação à morte! São comovedoras as numerosas cartas do exílio, nas quais João manifesta as suas preocupações pastorais com tonalidades de participação e de sofrimento pelas perseguições contra os seus. A marcha rumo à morte terminou em Comano no Ponto. Aqui, João moribundo, foi levado para a capela do mártir São Basilisco, onde rendeu a alma a Deus e foi sepultado, mártir ao lado do mártir (Palladio, Vita 119). Era o dia 14 de Setembro de 407, festa da Exaltação da Santa Cruz. A reabilitação teve lugar em 438 com Teodósio II. As relíquias do santo Bispo, colocadas na igreja dos Apóstolos em Constantinopla, foram depois trasladadas em 1204 para Roma, para a primitiva Basílica constantiniana, e agora jazem na capela do Coro dos Cónegos da Basílica de São Pedro. A 24 de Agosto de 2004 uma considerável parte delas foi doada pelo Papa João Paulo II ao Patriarca Bartolomeu I de Constantinopla. A memória litúrgica do santo celebra-se a 13 de Setembro. O beato João XXIII proclamou-o padroeiro do Concílio Vaticano II.

Foi dito acerca de João Crisóstomo que, quando foi colocado no trono da Nova Roma, isto é, Constantinopla, Deus mostrou nele um segundo Paulo, um doutor do Universo. Na realidade, em Crisóstomo há uma unidade substancial de pensamento e de acção tanto em Antioquia como em Constantinopla. Mudam só o papel e as situações. Meditando sobre as oito obras realizadas por Deus no suceder-se dos seis dias no comentário do Génesis, Crisóstomo deseja reconduzir os fiéis da criação ao criador: "É um grande bem", diz, "conhecer o que é a criatura e o que é o Criador".

Mostra-nos a beleza da criação e a transparência de Deus na sua criação, a qual se torna assim quase que uma "escada" para subir a Deus, para o conhecer. Mas a este primeiro passo acrescenta-se um segundo: este Deus criador é também o Deus da condescendência (synkatabasis). Nós somos débeis na "subida", os nossos olhos são débeis. E assim Deus torna-se o Deus da condescendência, que envia ao homem pecador e estrangeiro uma carta, a Sagrada Escritura, de modo que criação e Sagrada Escritura completam-se. À luz da Escritura, da carta que Deus nos deu, podemos decifrar a criação. Deus é chamado "pai terno" (philostorgios) (ibid.), médico das almas (Homilia 40, 3 sobre o Génesis), mãe (ibid.) e amigo afectuoso (Sobre a providência 8, 11-12). Mas a este segundo passo primeiro a criação como "escada" para Deus e depois a condescendência de Deus através duma carta que nos deu, a Sagrada Escritura acrescenta-se um terceiro passo. Deus não só nos transmite uma carta: em definitiva, desce Ele mesmo, encarna-se, torna-se realmente "Deus connosco", nosso irmão até à morte na Cruz. E a estes três passos Deus é visível na criação, Deus dá-nos uma sua carta, Deus desce e torna-se um de nós acrescenta-se no final um quarto passo. No arco da vida e da acção do cristão, o princípio vital e dinâmico é o Espírito Santo (Pneuma), que transforma as realidades do mundo. Deus entra na nossa existência através do Espírito Santo e transforma-nos do interior do nosso coração.


Nesta panorâmica, precisamente em Constantinopla João, no comentário continuativo dos Actos dos Apóstolos, propõe o modelo da Igreja primitiva (Act 4, 32-37) como modelo para a sociedade, desenvolvendo uma "utopia" social (quase uma "cidade ideal"). De facto, tratava-se de dar uma alma e um rosto cristão à cidade. Por outras palavras, Crisóstomo compreendeu que não é suficiente dar esmola, ajudar os pobres sempre que precisem, mas é necessário criar uma nova estrutura, um novo modelo de sociedade; um modelo baseado na perspectiva do Novo Testamento. É a nova sociedade que se revela na Igreja nascente. Portanto João Crisóstomo torna-se assim realmente um dos grandes Padres da Doutrina Social da Igreja: a velha ideia da "polis" grega é substituída por uma nova ideia de cidade inspirada na fé cristã. Crisóstomo defendia com Paulo (cf. 1 Cor 8, 11) a primazia de cada cristão, da pessoa como tal, também do escravo e do pobre. O seu projecto corrige assim a tradicional visão grega da "polis", da cidade, na qual amplas camadas de população eram excluídas dos direitos de cidadania, enquanto na cidade cristã todos são irmãos e irmãs com iguais direitos. A primazia da pessoa é também a consequência do facto que realmente partindo dela se constrói a cidade, enquanto que na "polis" grega a pátria era superior ao indivíduo, o qual estava totalmente subordinado à cidade no seu conjunto. Assim com Crisóstomo tem início a visão de uma sociedade construída pela consciência cristã. E ele diz-nos que a nossa "polis" é outra, "a nossa pátria está no céu" (Fl 3, 20) e esta nossa pátria também nesta terra nos torna iguais, irmãos e irmãs, e obriga-nos à solidariedade.

No final da sua vida, do exílio nos confins da Arménia, "o lugar mais remoto do mundo", João, voltando à sua primeira pregação de 386, retomou o tema que lhe era tão querido do plano que Deus prossegue em relação à humanidade: é um plano "indizível e incompreensível", mas certamente guiado por Ele com amor (cf. Sobre a providência 2, 6). É esta a nossa certeza.

Mesmo se não podemos decifrar os pormenores da história pessoal e colectiva, sabemos que o plano de Deus se inspira sempre no seu amor. Assim, apesar dos sofrimentos, Crisóstomo reafirmava a descoberta de que Deus ama cada um de nós com um amor infinito, e por isso deseja que todos se salvem. Por seu lado, o santo Bispo cooperou nesta salvação generosamente, sem se poupar, ao longo de toda a sua vida. De facto ele considerava o fim último da sua existência a glória de Deus, que já agonizante deixou como extremo testamento: "Glória a Deus por tudo!" (Palladio, Vita 11).



3 de Outubro de 2007

Queridos irmãos e irmãs

Também hoje, continuando o nosso itinerário que está a seguir os passos dos Padres da Igreja, encontramos uma grande figura: São Cirilo de Alexandria. Ligado à controvérsia cristológica que levou ao Concílio de Éfeso em 431, e último representante de relevo da tradição alexandrina, no Oriente grego Cirilo foi mais tarde definido "guardião da exactidão" que se deve entender como guardião da verdadeira fé e mesmo "selo dos Padres". Estas antigas expressões manifestam oportunamente um dado de facto que é característico de Cirilo, ou seja, a referência constante do Bispo de Alexandria aos autores eclesiásticos precedentes (entre eles, sobretudo Atanálio), com a finalidade de mostrar a continuidade da própria teologia com a tradição. Ele insere-se intencional e explicitamente na tradição da Igreja, em que reconhece a garantia da continuidade com os Apóstolos e com o próprio Cristo. Venerado como Santo quer no Oriente quer no Ocidente, em 1882 São Cirilo foi proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII, que atribuiu contemporaneamente o mesmo título também a outro importante representante da patrística grega, São Cirilo de Jerusalém. Revelam-se assim a atenção e o amor pelas tradições cristãs orientais daquele Papa, que em seguida desejou proclamar Doutor da Igreja também São João Damasceno, mostrando deste modo que tanto a tradição oriental como a ocidental exprimem a doutrina da única Igreja de Cristo.

As notícias sobre a vida de Cirilo antes da sua eleição para a importante sede de Alexandria são muito escassas. Sobrinho de Teófilo, que desde 385 como Bispo administrou com mão firme e com prestígio a diocese alexandrina, Cirilo nasceu provavelmente na mesma metrópole egípcia entre 370 e 380, foi depressa iniciado na vida eclesiástica e recebeu uma boa educação, tanto cultural como teológica. Em 403 estava em Constantinopla, no séquito do poderoso tio, e ali participou no Sínodo chamado do Carvalho, que depôs o Bispo da cidade, João (mais tarde chamado Crisóstomo), assinalando assim o triunfo da sede alexandrina sobre a tradicionalmente rival de Constantinopla, onde residia o imperador. Quando o tio Teófilo faleceu, em 412 o jovem Cirilo foi eleito Bispo da influente Igreja de Alexandria, que governou com grande energia durante trinta e dois anos, visando sempre afirmar o seu primado em todo o Oriente, fortalecido inclusive pelos tradicionais vínculos com Roma.

Dois ou três anos depois, em 417 ou em 418, o Bispo de Alexandria demonstrou-se realista ao recompor a ruptura da comunhão com Constantinopla, que já estava em acto desde 406, como consequência da deposição de João Crisóstomo. Mas o antigo contraste com a sede constantinopolitana voltou a inflamar-se cerca de dez anos mais tarde, quando em 428 foi eleito Nestório, um autorizado e severo monge de formação antioquena. Com efeito, o novo Bispo de Constantinopla depressa suscitou oposições porque na sua pregação preferia para Maria o título de "Mãe de Cristo" (Christolókos), no lugar daquele já muito querido à devoção popular de "Mãe de Deus" (Theotókos). Motivo desta escolha do Bispo Nestório era a sua adesão à cristologia de tipo antioqueno que, para salvaguardar a importância da humanidade de Cristo, terminava por afirmar a sua divisão da divindade. E assim já não era verdadeira a união entre Deus e o homem em Cristo e, naturalmente, já não se podia falar de "Mãe de Deus".

A reacção de Cirilo então máximo representante da cristologia alexandrina, que aliás tencionava sublinhar fortemente a unidade da pessoa de Cristo foi quase imediata, e desenfreou-se com todos os meios já a partir de 429, dirigindo-se também com algumas cartas ao próprio Nestório. Na segunda missiva (PG 77, 44-49), que Cirilo lhe enviou em Fevereiro de 430, lemos uma clara afirmação do dever dos Pastores de preservar a fé do Povo de Deus. Este era o seu critério, de resto válido também hoje: a fé do Povo de Deus é expressão da tradição, é garantia da sã doutrina. Assim ele escreve a Nestório: "É preciso expor ao povo o ensinamento e a interpretação da fé do modo mais irrepreensível, recordando que quem escandaliza um só dos pequeninos que crêem em Cristo há-de padecer um castigo intolerável".

Na mesma carta a Nestório carta que mais tarde, em 451, fora aprovada pelo Concílio de Calcedónia, o IV ecuménico Cirilo descreve com clareza a sua fé cristológica: "Afirmamos, assim, que são diferentes as naturezas que se reuniram numa verdadeira unidade, mas de ambas derivou um único Cristo e Filho, não por ter sido eliminada por causa da unidade a diferença das naturezas, mas sobretudo porque a divindade e a humanidade, reunidas em união indizível e inenarrável produziram para nós o único Senhor, Cristo e Filho". E isto é importante: realmente a verdadeira humanidade e a autêntica divindade unem-se numa única Pessoa, nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, continua o Bispo de Alexandria, "professaremos um só Cristo e Senhor, não no sentido que adoramos o homem juntamente com o Logos, para não insinuar a ideia da separação, ao dizer "juntamente", mas no sentido que adoramos um só e o mesmo, porque não é estranho ao Logos o seu corpo, com o qual está também sentado ao lado do seu Pai, não como se sentassem ao seu lado dois filhos, mas um só, único à própria carne".

E depressa o Bispo de Alexandria, graças a alianças prudentes, obteve que Nestório fosse reiteradamente condenado: por parte da sé romana, e depois com uma série de doze anatematismos por ele mesmo compostos e, enfim, pelo Concílio realizado em Éfeso no ano 431, o III ecuménico. A assembleia, reunida com vicissitudes alternadas e tumultuosas, concluiu-se com o triunfo da devoção a Mariae com o exílio do Bispo constantinopolitano, que não queria reconhecer à Virgem o título de "Mãe de Deus" por causa de uma cristologia errónea, que trazia divisão ao próprio Cristo. Assim, depois de ter prevalecido sobre o rival e sobre a sua doutrina, Cirilo soube porém alcançar, já em 433, uma fórmula teológica de compromisso e de reconciliação com os antioquenos. E também isto é significativo: por um lado, há a clareza da doutrina de fé, mas por outro também a busca intensa da unidade e da reconciliação. Nos anos seguintes, dedicou-se de todos os modos à defesa e ao esclarecimento da sua posição teológica até à sua morte, ocorrida no dia 27 de Junho de 444.

Os escritos de Cirilo deveras muito numerosos e difundidos amplamente também em diversas traduções latinas e orientais já durante a sua vida, como testemunho do seu sucesso imediato são de importância primordial para a história do cristianismo. São importantes os seus comentários a muitos livros do Antigo e do Novo Testamento, entre os quais todo o Pentateuco, Isaías, os Salmos e os Evangelhos de João e de Lucas. São também relevantes as numerosas obras doutrinais, em que é recorrente a defesa da fé trinitária contra as teses arianas e contra as teses de Nestório. Base do ensinamento de Cirilo são a tradição eclesiástica e, em particular como já mencionei os escritos de Atanásio, o seu grande predecessor na sede alexandrina. Entre os outros escritos de Cirilo, devem recordar-se finalmente os livros Contra Juliano, a última grande resposta às polémicas anticristãs, ditada pelo Bispo de Alexandria provavelmente nos últimos anos da sua vida para responder à obra Contra os Galileus, composta muitos anos antes, no ano 363, pelo imperador que era chamado o Apóstata por ter abandonado o cristianismo em que tinha sido educado.

A fé cristã é sobretudo um encontro com Jesus, "uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte" (Encíclica Deus caritas est, 1). De Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, São Cirilo de Alexandria foi uma testemunha incansável e determinada, sublinhando acima de tudo a sua unidade, como ele reitera no ano 433 na primeira carta (PG 77, 228-237) ao Bispo Sucenso: "Um só é o Filho, um só é o Senhor Jesus Cristo, tanto antes como depois da encarnação. Com efeito, não era um Filho o Logos nascido de Deus Pai, e outro o Filho nascido da Santa Virgem; mas acreditamos que precisamente Aquele que existe antes dos tempos nasceu também segundo a carne de uma mulher". Esta afirmação, para além do seu significado doutrinal, mostra que a fé em Jesus Logos nascido do Pai está também bem arraigada na história porque, como aifrma São Cirilo, este mesmo Jesus entrou no tempo com o nascimento de Maria, a Theotókos e, em conformidade com a sua promessa, há-de ficar connosco para sempre. E isto é importante: Deus é eterno, nasceu de uma mulher e permanece connosco todos os dias. Vivamos nesta confiança, e nesta confiança encontremos o caminho da nossa vida.



10 de Outubro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Gostaria hoje de falar de um grande Padre da Igreja do Ocidente, Santo Hilário de Poitiers, uma das grandes figuras de Bispos do século IV. Em relação aos arianos, que consideravam o Filho de Deus, Jesus, uma criatura, mesmo se excelente, mas só criatura, Hilário consagrou toda a sua vida à defesa da fé na divindade de Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus como o Pai, que o gerou desde a eternidade.

Não dispomos de dados certos sobre a maior parte da vida de Hilário. As fontes antigas dizem que nasceu em Poitiers, provavelmente por volta do ano 310. De família rica, recebeu uma sólida formação literária, que se reconhece bem nos seus escritos. Não parece ter crescido num ambiente cristão. Ele mesmo nos fala de um caminho de busca da verdade, que o conduziu pouco a pouco ao reconhecimento do Deus criador e do Deus encarnado, que morreu para nos dar a vida eterna.

Baptizado por volta de 345, foi eleito Bispo da sua cidade natal por volta de 353-354. Nos anos seguintes Hilário escreveu a sua primeira obra, o Comentário ao Evangelho de Mateus. Trata-se do mais antigo comentário em língua latina que nos tenha chegado deste Evangelho. Em 356 Hilário assistiu como Bispo ao Sínodo de Béziers, no sul da França, o "sínodo dos falsos apóstolos", como ele mesmo o chama, a partir do momento que a assembleia foi dominada pelos bispos filoarianos, que negavam a divindade de Jesus Cristo. Estes "falsos apóstolos" pediram ao Imperador Constâncio a condenação ao exílio do Bispo de Poitiers.AssimHiláriofoiobrigado a deixar a Gália durante o Verão de 356.

Exilado na Frígia, na actual Turquia, Hilário entrou em contacto com um contexto religioso totalmente dominado pelo arianismo. Também ali a sua solicitude de Pastor o levou a trabalhar incansavelmente pelo restabelecimento da unidade da Igreja, com base na recta fé formulada pelo Concílio de Niceia. Para esta finalidade ele iniciou a redacção da sua obra dogmática mais importante e conhecida: De Trinitate (Sobre a Trindade). Nela Hilário expõe o seu caminho pessoal rumo à consciência de Deus e preocupa-se em mostrar que a Escritura afirma claramente a divindade do Filho e a sua igualdade com o Pai não só no Novo Testamento, mas também em muitas páginas do Antigo, no qual já aparece o mistério de Cristo. Perante os arianos ele insiste sobre a verdade dos nomes de Pai e de Filho e desenvolve toda a sua teologia trinitária partindo da fórmula do Baptismo que nos foi dado pelo próprio Senhor; "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo".

O Pai e o Filho são da mesma substância. E se alguns trechos do Novo Testamento poderiam fazer pensar que o Filho é inferior ao Pai, Hilário ofereceu regras claras para evitar interpretações desviantes: alguns textos da Escritura falam de Jesus como Deus, outros ao contrário põem em realce a sua humanidade. Alguns referem-se a Ele na sua preexistência junto do Pai; outros tomam em consideração o estado de abaixamento (kenosi), a sua descida até à morte; por fim, outros, contemplam-no na glória da ressurreição. Nos anos do seu exílio Hilário escreveu também o Livro dos Sínodos, no qual reproduz e comenta para os seus irmãos Bispos da Gália as confissões de fé e outros documentos dos sínodos reunidos no Oriente nos meados do séc. IV. Sempre firme na oposição aos arianos radicais, Santo Hilário mostra um espírito conciliante em relação aos que aceitavam confessar que o Filho era semelhante ao Pai na essência, naturalmente procurando conduzi-los para a fé plena, segundo a qual não há apenas uma semelhança, mas uma verdadeira igualdade do Pai e do Filho na divindade. Também isto me parece característico: o espírito de conciliação que procura compreender quantos ainda não a conseguiram e ajuda-os, com grande inteligência teológica, a alcançar a fé plena na divindade verdadeira do Senhor Jesus Cristo.

Em 360 ou 361, Hilário pôde finalmente regressar do exílio à pátria e imediatamente retomou a actividade pastoral na sua Igreja, mas a influência do seu magistério expandiu-se de facto muito além dos seus confins. Um sínodo celebrado em Paris em 360 ou 361 retoma a linguagem do Concílio de Niceia. Alguns autores antigos pensam que esta mudança antiariana do episcopado da Gália seja em grande parte devida à fortaleza e à mansidão do Bispo de Poitiers. Era precisamente este o seu dom: conjugar fortaleza na fé e mansidão na relação interpessoal. Nos últimos anos de vida ele compôs ainda os Tratados sobre os Salmos, um comentário sobre cinquenta e oito Salmos, interpretados segundo o princípio evidenciado na introdução da obra: "Não há dúvida de que todas as coisas que se dizem nos Salmos se devem compreender segundo o anúncio evangélico, de modo que, seja qual for a voz com a qual o espírito profético tenha falado, tudo esteja todavia referido ao conhecimento da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, encarnação, paixão e reino, e à glória e poder da nossa ressurreição" (Instructio Psalmorum, 5). Ele vê em todos os Salmos esta transparência do mistério de Cristo e do seu Corpo que é a Igreja. Em diversas ocasiões Hilário encontrou-se com São Martinho: precisamente perto de Poitiers o futuro Bispo de Tours fundou um mosteiro, que ainda hoje existe. Hilário faleceu em 367. A sua memória litúrgica celebra-se a 13 de Janeiro. Em 1851 o Beato Pio IX proclamou-o Doutor da Igreja.

Para resumir a essência da sua doutrina, gostaria de dizer que Hilário encontra o ponto de partida da sua reflexão teológica na fé baptismal. No De Trinitate Hilário escreve: Jesus "comandou que baptizassem em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28, 19), isto é, na confissão do Autor, do Unigénito e do Senhor. Um só é o Autor de todas as coisas, porque um só é Deus Pai, do qual tudo procede. E um só é Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante o qual todas as coisas foram criadas (1 Cor 8, 6), e um só é o Espírito (Ef 4, 4) dom em todos... Em nada pode faltar uma plenitude tão grande, na qual convergem no Pai, no Filho e no Espírito Santo a imensidão no Eterno, a revelação na Imagem, a glória no Dom" (De Trinitate 2, 1). Deus Pai, sendo todo amor, é capaz de comunicar em plenitude a sua divindade ao Filho. É para mim particularmente bela a seguinte fórmula de Santo Hilário: "Deus sabe ser unicamente amor, sabe ser só Pai. E quem ama não é invejoso, e quem é Pai é-o na sua totalidade. Este nome não admite sujeições, como se Deus fosse Pai em certos aspectos, e noutros não" (ibid. 9, 61).

Por isso o Filho é plenamente Deus sem falta alguma ou diminuição: "Aquele que provém do Perfeito é perfeito, porque quem tem tudo lhe deu tudo" (Ibid. 2, 8). Só em Cristo, Filho de Deus e Filho do homem, a humanidade encontra a salvação. Assumindo a natureza humana, Ele uniu a si cada homem, "fez-se a carne de todos nós" (Tractatus in Psalmos 54, 9); "assumiu em si a natureza de toda a carne, e tendo-se tornado por meio dela a videira verdadeira, tem em si a raiz de cada ramo" (Ibid., 51, 16). Precisamente por isso o caminho rumo a Cristo está aberto a todos porque ele atraiu todos no seu ser homem mesmo se é sempre exigida a conversão pessoal: "Mediante a relação com a sua carne, o acesso a Cristo está aberto a todos, sob condição de que se despojem do homem velho (cf. Ef 4, 22) e o preguem na sua cruz (cf. Cl 2, 14); sob condição de que abandonem as obras de antes e se convertam, para serem sepultados com ele no seu baptismo, em vista da vida (cf. Cl 1, 12; Rm 6, 4)" (Ibid., 91, 9).

A fidelidade a Deus é um dom da sua graça. Por isso Santo Hilário pede, no fim do seu tratado sobre a Trindade, para se poder manter sempre fiel à fé do baptismo. É uma característica deste livro: a reflexão transforma-se em oração e a oração volta a ser reflexão. Todo o livro é um diálogo com Deus. Gostaria de concluir a catequese de hoje com uma destas orações, que se torna assim também nossa oração: "Faz, ó Senhor recita Hilário de maneira inspirada com que eu me mantenha sempre fiel ao que professei no símbolo da minha regeneração, quando fui baptizado no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Que eu te adore, nosso Pai, e juntamente contigo e com o teu Filho; que eu mereça o teu Espírito Santo, o qual procede de ti mediante o teu Unigénito... Amém" (De Trinitate 12, 57).



7 de Outubro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

Esta manhã convido-vos a reflectir sobre Santo Eusébio de Vercelli, o primeiro Bispo da Itália setentrional do qual temos notícias certas. Nasceu na Sardenha no início do séc. IV, e ainda em tenra idade transferiu-se para Roma com a sua família. Mais tarde foi instituído leitor: inseriu-se assim no clero da Urbe, num tempo em que a Igreja estava gravemente provada pela heresia ariana. A grande estima que cresceu em volta de Eusébio explica a sua eleição em 345 para a cátedra episcopal de Vercelli. O novo Bispo iniciou imediatamente uma intensa obra de evangelização num território ainda em grande parte pagão, especialmente nas zonas rurais.

Inspirado por Santo Atanásio que tinha escrito a Vida de Santo Agostinho, iniciador do monaquismo no Oriente fundou em Vercelli uma comunidade sacerdotal, semelhante a uma comunidade monástica. Este cenóbio deu ao clero da Itália setentrional uma marca significativa de santidade apostólica, e suscitou figuras de Bispos importantes, como Limenio e Onorato, sucessores de Eusébio em Vercelli, Gaudêncio em Novara, Exuperâncio em Tortona, Eustásio em Aosta, Eulógio em Ivrea, Máximo em Turim, todos venerados pela Igreja como Santos.

Formado solidamente na fé nicena, Eusébio defendeu com todas as forças a plena divindade de Jesus Cristo, definido pelo Credo de Niceia "da mesma substância" do Pai. Com esta finalidade aliou-se aos grandes Padres do séc. IV sobretudo com Santo Atanásio, o alferes da ortodoxia nicena contra a política filoariana do imperador. Para o imperador a fé ariana mais simples parecia ser politicamente mais útil como ideologia do império. Para ele não contava a verdade, mas a oportunidade política: pretendia instrumentalizar a religião como vínculo da unidade do império.

Mas estes grandes Padres resistiram defendendo a verdade contra o domínio da política. Por este motivo Eusébio foi condenado ao exílio como muitos outros Bispos do Oriente e do Ocidente: como o próprio Atanásio, como Hilário de Poitiers do qual falámos na semana passada como Ósio de Córdova. Em Citópolis na Palestina, onde foi confinado entre 355 e 360, Eusébio escreveu uma página maravilhosa da sua vida. Também aqui fundou um cenóbio com um pequeno grupo de discípulos, e daqui cuidou a correspondência com os seus fiéis do Piemonte, como demonstra sobretudo a segunda das três Cartas eusébianas reconhecidas como autênticas. Em seguida, depois de 360, foi exilado na Capadócia e em Tebaide onde sofreu maus-tratos físicos. Em 361, tendo falecido Constâncio II, sucedeu-lhe o imperador Juliano, chamado o apóstata, que não se interessava pelo cristianismo como religião do império, mas queria simplesmente restabelecer o paganismo. Ele pôs fim ao exílio destes Bispos e consentiu também que Eusébio voltasse a tomar posse da sua sede. Em 362 foi convidado por Anastásio a participar no Concílio de Alexandria, que decidiu perdoar os bispos arianos sob condição de que voltassem ao estado laical. Eusébio pôde exercer ainda durante uns dez anos, até à morte, o ministério episcopal, realizando com a sua cidade uma relação exemplar, que não deixou de inspirar o serviço pastoral de outros Bispos da Itália setentrional, dos quais nos ocuparemos nas próximas catequeses, como Santo Ambrósio de Milão e São Máximo de Turim.

A relação entre o Bispo de Vercelli e a sua cidade está iluminada sobretudo por dois testemunhos epistolares. O primeiro encontra-se na Carta já citada, que Eusébio escreveu do exílio de Citópolis, "aos amadíssimos irmãos e aos presbíteros tão desejados, e aos santos povos de Vercelli, Novara, Ivrea e Tortona, firmes na fé" (Ep. secunda, CCL 9, pág. 104). Estas expressões iniciais, que marcam a comoção do bom pastor perante o seu rebanho, encontram amplo confronto no final da Carta, nas saudações muito calorosas do Padre a todos e a cada um dos seus filhos de Vercelli, com expressões carregadas de afecto e de amor. Antes de tudo devemos notar a relação explícita que liga o Bispo às sanctae plebes não só de Vercellae/Vercelli a primeira e, durante alguns anos ainda, a única diocese do Piemonte mas também de Novaria/Novara, Eporedia/Ivrea e Dertona/Tortona, isto é daquelas comunidades cristãs que, no interior da mesma diocese, tinham alcançado uma certa consistência e autonomia. Outro elemento interessante é fornecido pela despedida com a qual a Carta se conclui: Eusébio pede aos seus filhos e filhas que saúdem "também aqueles que estão fora da Igreja, e que se dignam de nutrir por nós sentimentos de amor: etiam hos, qui foris sunt et nos dignantur diligere". Sinal evidente que a relação do Bispo com a sua cidade não se limitava à população cristã, mas se alargava também a quantos fora da Igreja reconheciam de certa forma a autoridade espiritual e amavam este homem exemplar.

O segundo testemunho da singular relação do Bispo com a sua cidade provém da Carta que Santo Ambrósio de Milão escreveu aos Vercelenses por volta de 394, mais de vinte anos depois da morte de Eusébio (Ep. extra collectionem 14: Maur. 63). A Igreja de Vercelli atravessava um momento difícil: estava dividida e sem pastor. Com franqueza Ambrósio declara hesitar em reconhecer naqueles Vercelenses "a descendência dos santos Padres, que aprovaram Eusébio logo que o viram, sem nunca o terem conhecido antes, esquecendo até os próprios cidadãos". Na mesma Carta o Bispo de Milão afirma do modo mais claro a sua estima em relação a Eusébio: "Um homem grandioso", escreve de modo categórico, "mereceu ser eleito por toda a Igreja". A admiração de Ambrósio por Eusébio fundava-se sobretudo no facto de que o Bispo de Vercelli governava a diocese com o testemunho da sua vida: "Com a austeridade do jejum governava a sua Igreja". De facto, também Ambrósio se sentia fascinado como ele mesmo reconheceu pelo ideal monástico da contemplação de Deus, que Eusébio tinha perseguido no seguimento do profeta Elias.

Em primeiro lugar - escreve Ambrósio - o Bispo de Vercelli recolheu o próprio clero em vita communis e educou-o à "observância das regras monásticas, mesmo vivendo na cidade". O Bispo e o seu clero deviam partilhar os problemas dos concidadãos, e fizeram-no de modo credível, precisamente cultivando ao mesmo tempo uma cidadania diversa, a do Céu (cf. Hb 13, 14). E assim construíram uma verdadeira cidadania, uma verdadeira solidariedade entre os cidadãos de Vercelli.

Assim Eusébio, enquanto fazia sua a causa da sancta plebs de Vercelli, vivia na cidade como um monge, abrindo a cidade a Deus. Esta característica, portanto, nada tirou ao seu dinamismo pastoral exemplar. Aliás, parece que ele instituiu em Vercelli as freguesias para um serviço eclesial ordenado e estável, e promoveu os santuários marianos para a conversão das populações rurais pagãs. Aliás, esta "característica monástica" dava uma dimensão peculiar à relação do Bispo com a sua cidade. Como já os apóstolos, pelos quais Jesus rezava na sua Última Ceia, os Pastores e os fiéis da Igreja "estão no mundo" (Jo 17, 11), mas não são "do mundo". Por isso os pastores recordava Eusébio devem exortar os fiéis a não considerar as cidades do mundo como a sua habitação estável, mas a procurar a Cidade futura, a definitiva Jerusalém do céu. Esta "reserva escatológica" consente que os pastores e os fiéis salvem a justa escala dos valores, sem nunca se submeter às modas do momento e às pretensões injustas do poder político em acto. A autêntica escala dos valores parece dizer toda a vida de Eusébio não vem dos imperadores de ontem e de hoje, mas de Jesus Cristo, o Homem perfeito, igual ao Pai na divindade, mas homem como nós. Referindo-se a esta escala de valores, Eusébio não se cansa de "recomendar firmemente" aos seus fiéis "que guardem com toda a solicitude a fé, mantenham a concórdia, sejam assíduos na oração" (Ep. secunda, cit.).

Queridos amigos, também eu vos recomendo com todo o coração estes valores perenes, ao saudar-vos e abençoar-vos com as mesmas palavras com que o Santo Bispo Eusébio concluiu a sua segunda Carta: "Dirijo-me a todos vós, meus irmãos e santas irmãs, filhos e filhas, fiéis dos dois sexos e de todas as idades, por a que vos digneis... levar a nossa saudação também a quantos estão fora da Igreja, e que se dignam ter por nós sentimentos de amor" (ibid.).


24 de Outubro de 2007

Queridos irmãos e irmãs!

O Santo Bispo Ambrósio do qual vos falo hoje faleceu em Milão na noite de 3 para 4 de Abril de 397. Era a alvorada do Sábado Santo. No dia anterior, por volta das cinco da tarde, tinha rezado, deitado na cama, com os braços abertos em forma de cruz. Participava assim, no solene tríduo pascal, da morte e ressurreição do Senhor. "Nós víamos os seus lábios mover-se", testemunha Paulino, o diácono fiel que a convite de Agostinho escreveu a sua Vida, "mas não ouvíamos a sua voz". Improvisamente parecia que a situação precipitava. Onorato, Bispo de Vercelli, que assistia Ambrósio e dormia no andar de cima, foi acordado por uma voz que repetia: "Levanta-te, depressa! Ambrósio está prestes a morrer...". Onorato desceu depressa prossegue Paulino "e deu ao Santo o Corpo do Senhor. Logo que o tomou e engoliu, Ambrósio rendeu o espírito, levando consigo o bom viático. Assim a sua alma, fortalecida pela virtude daquele alimento, goza agora da companhia dos anjos" (Vida 47). Naquela Sexta-Feira Santa de 397 os braços abertos de Ambrósio moribundo expressavam a sua mística participação na morte e na ressurreição do Senhor. Era esta a sua última catequese: no silêncio das palavras, ele falava ainda com o testemunho da vida.

Quando morreu, Ambrósio não era idoso. Ainda não tinha 60 anos, tendo nascido por volta de 340 em Tréveros, onde o pai era prefeito das Gálias. A família era cristã. Quando o pai faleceu, a mãe levou-o a Roma quando ainda era adolescente, e preparou-o para a carreira civil, garantindo-lhe uma sólida instrução rectórica e jurídica. Por volta de 370 foi enviado a governar as províncias da Emília e da Ligúria, com sede em Milão. Precisamente ali fermentava a luta entre ortodoxos e arianos, sobretudo depois da morte do Bispo ariano Auxêncio. Ambrósio interveio para pacificar os ânimos das duas facções adversas, e a sua autoridade foi tal que ele, sendo simples catecúmeno, foi aclamado pelo povo Bispo de Milão.

Até àquele momento Ambrósio era o mais alto magistrado do Império na Itália setentrional. Culturalmente muito preparado, mas de igual modo despreparado na abordagem às Escrituras, o novo Bispo pôs-se a estudá-las alacremente. Aprendeu a conhecer e a comentar a Bíblia pelas obras de Orígenes, o mestre indiscutível da "escola alexandrina". Deste modo Ambrósio transferiu para o ambiente latino a meditação das Escrituras iniciada por Orígenes, começando no Ocidente a prática da lectio divina. O método da lectio chegou a guiar toda a pregação e os escritos de Ambrósio, que surgiram precisamente da escuta orante da Palavra de Deus.

Um célebre exórdio de uma catequese ambrosiana mostra distintamente como o Santo Bispo aplicava o Antigo Testamento à vida cristã: "Quando se liam as histórias dos Patriarcas e as máximas dos Provérbios, falávamos todos os dias de moral diz o Bispo de Milão aos seus catecúmenos e aos neófitos para que, por eles formados e instruídos, vos habituásseis a entrar na vida dos Padres e a seguir o caminho da obediência aos preceitos divinos" (Os mistérios 1, 1). Por outras palavras, os neófitos e os catecúmenos, segundo o parecer do Bispo, depois de terem aprendido a arte do viver bem, já podiam considerar-se preparados para os grandes mistérios de Cristo. Assim a pregação de Ambrósio que representa o núcleo da sua enorme obra literária parte da leitura dos Livros sagrados ("os Patriarcas, isto é, Livros históricos, e "os Provérbios", ou seja, os Livros sapienciais), para viver em conformidade com a divina Revelação.

É evidente que o testemunho pessoal do pregador e o nível de exemplaridade da comunidade cristã condicionaram a eficiência da pregação. Sob este ponto de vista é significativo um trecho das Confissões de Santo Agostinho. Ele tinha vindo de Milão como professor de rectórica; era céptico, não cristão. Estava procurando, mas não era capaz de encontrar realmente a verdade cristã. A comover o coração do jovem reitor africano, céptico e desesperado, e a estimulá-lo à conversão definitivamente, não foram antes de tudo as belas homilias (mesmo se por ele muito apreciadas) de Ambrósio. Mas sim o testemunho do Bispo e da sua Igreja milanesa, que rezava e cantava, compacta como um só corpo.

Uma Igreja capaz de resistir às prepotências do imperador e de sua mãe, que nos primeiros dias de 368 tinham voltado para pretender a requisição de um edifício de culto para as cerimónias dos arianos. No edifício que devia ser exigido narra Agostinho "o povo devoto vigiava, pronto a morrer com o próprio Bispo". Este testemunho das Confissões é precioso, porque assinala que algo se movia no íntimo de Agostinho, o qual prossegue: "Também nós participávamos da exaltação de todo o povo" (Confissões, 9, 7).

Da vida e do exemplo do Bispo Ambrósio, Agostinho aprendeu a crer e a pregar. Podemos referir-nos a um célebre sermão do Africano, que mereceu ser citado muitos séculos depois na Constituição conciliar Dei Verbum: "É necessário admoesta de facto no n. 25 que todos os clérigos, sobretudo os sacerdotes e todos os que, como os diáconos e catequistas, se dedicam legitimamente ao ministério da palavra, se impregnem das Sagradas Escrituras, pela leitura assídua e o estudo diligente, para que não se torne e esta é a citação agostiniana "pregador vão e exterior da palavra de Deus quem no seu íntimo não o ouve"". Tinha aprendido precisamente de Ambrósio este "no seu íntimo", esta assiduidade na leitura da Sagrada Escritura em atitude orante, de modo a acolher realmente no próprio coração e assimilar a Palavra de Deus.

Queridos irmãos e irmãs, gostaria de vos voltar a propor uma espécie de "ícone patrístico", que, interpretado à luz de quanto dissemos, representa eficazmente "o coração" da doutrina ambrosiana. No sexto livro das Confissões Agostinho narra o seu encontro com Ambrósio, um encontro certamente de grande importância na história da Igreja. Ele escreve textualmente que, quando se encontrava com o Bispo de Milão, o achava regularmente empenhado com catervae de pessoas cheias de problemas, por cujas necessidades ele se prodigalizava. Havia sempre uma longa fila que esperava para falar com Ambrósio para dele obter conforto e esperança.

Quando Ambrósio não estava com elas, com o povo (e isto acontecia no espaço de pouquíssimo tempo), restabelecia o corpo com o alimento necessário, ou alimentava o espírito com as leituras. Aqui Ambrósio faz as suas maravilhas, porque Ambrósio lia as Escrituras sem pronunciar palavra, só com os olhos (cf. Conf. 6, 3). De facto, nos primeiros séculos cristãos, a leitura era estritamente concebida para a proclamação, e ler em voz alta facilitava a compreensão também de quem lia. Que Ambrósio pudesse ler as páginas só com os olhos, assinala a Agostinho admirado uma capacidade singular de leitura e de familiaridade com as Escrituras. Pois bem, naquela "leitura com os lábios", onde o coração se empenha a alcançar a inteligência da Palavra de Deus eis "o ícone" do qual estamos a falar pode-se entrever o método da catequese ambrosiana: é a própria Escritura, intimamente assimilada, que sugere os conteúdos a serem anunciados para levar à conversão dos corações.

Assim, segundo o magistério de Ambrósio e de Agostinho, a catequese é inseparável do testemunho de vida. Pode servir também para o catequista o que escrevi na Introdução ao cristianismo, a propósito do teólogo. Quem educa para a fé não pode arriscar de parecer uma espécie de clown, que recita uma parte "por profissão". Aliás usando uma imagem querida a Orígenes, escritor particularmente apreciado por Ambrósio ele deve ser como o discípulo amado, que reclinou a cabeça no coração do Mestre, e ali aprendeu o modo de pensar, de falar, de agir.

No final de tudo, o verdadeiro discípulo é aquele que anuncia o Evangelho do modo mais credível e eficaz.

Como o apóstolo João, o Bispo Ambrósio que nunca se cansava de repetir: "Omnia Christus est nobis!; Cristo é tudo para nós!" permanece uma testemunha autêntica do Senhor. Com as suas próprias palavras, cheias de amor a Jesus, concluímos assim a nossa catequese: "Omnia Christus est nobis! Se queres curar uma ferida, ele é o médico; se estás a arder de febre, ele é a fonte; se estás oprimido pela iniquidade, ele é a justiça; se precisas de ajuda, ele é a força; se temes a morte, ele é a vida; se desejas o céu, ele é o caminho; se estás nas trevas, ele é a luz... Saboreai e vede como o Senhor é bom: bem-aventurado é o homem que n'Ele depõe a sua esperança" (De virginitate 16, 99). Confiemos também nós em Cristo. Seremos assim bem-aventurados e viveremos em paz.




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